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26 de fevereiro de 2018
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10:15

A cachaça e a ressaca do futebol

Por
Sul 21
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A cachaça e a ressaca do futebol
A cachaça e a ressaca do futebol
Crédito Obrigatório: Fotos: Felipe Oliveira / EC Bahia
Fotos liberadas apenas para uso editorial

Ronald Augusto (*)

Como já estamos cansados de saber, a temporada futebolística começa com os campeonatos estaduais. Por uma estúpida coincidência, casos de violência dentro e fora das quatro linhas têm início na mesma época. Não é mesmo surpreendente? Em função disso, inicialmente, convido o leitor a refletir sobre o problema do torcedor-tipo de futebol. Grosso modo ele é racista, homofóbico, misógino. O torcedor é covarde. Sua suposta valentia se deve à multidão da qual se nutre, nela o torcedor está imerso e protegido. Ele é um pequeno déspota. O torcedor é uma criança grande e mimada, isto é, um sem-educação que não sabe lidar com o revés ou com a frustração. Ofensivo, intimidador, desrespeitoso, são alguns dos predicados do torcedor. O torcedor é um devoto de uma religião de bárbaros. O torcedor é um problema social. Ele não pensa, apenas reage. O torcedor não sabe fazer distinções. Essa espécie de torcedor é um tremendo acidente na direção do futebol enquanto experiência cultural.

O foco do comentário, para ser aparentemente mais justo, nem precisaria evocar o eventual jogador que perde a cabeça e provoca a sua ou a torcida adversária; mas, por outro lado, o comentário seria incompleto se se detivesse apenas nessa coisa chamada “torcedor”, ele mesmo. No quadro dos fatos futebolísticos essa ou aquela atitude agressiva do jogador talvez nem deva ser encarada como uma excepcionalidade, porém infelizmente às vezes isso não merece um debate mais profundo. O que sobra é muita retórica de comentaristas e, de resto, em prejuízo daquilo que de fato interessa, ou seja, o problema intolerável e persistente da violenta “cultura do futebol”, sistema de valores em que os envolvidos naturalizam com cinismo risonho toda sorte de desrespeitos porque – mas por que razão mesmo? – se pressupõe que devemos entender as repetitivas situações agressivas como meras “sublimações” de um instinto de guerra ou de combate, hoje supostamente banido das relações civilizadas. Ora, esse psicologismo de almanaque já não é suficiente para explicar a violência do futebol. A contragosto do nosso desejo, precisamos admitir que não somos tão diferentes do torcedor preconceituoso e do jogador criador de caso.

Entendo que torcedor e jogador não são uma e a mesma coisa, se isso fosse verdade, e graças a uma fabulosa empatia, eles se entenderiam na riqueza e na pobreza dos desempenhos e resultados. O que me espanta, mas nem tanto, é a dificuldade que temos de fazer o movimento da autorreflexão com relação ao papel de torcedor que até aqui viemos desempenhando, afinal de contas, somos, cada um de nós, uma instância dessa figura. Aceitamos sem mais que é tudo paixão. Ainda bem que a contrapelo desse tipo de pensamento retranqueiro, isto é, do futebol concebido como refém do sangue nos olhos e do gesto reativo, há gente como Marcelo Carvalho que compreende que um pouco de razão não vai tirar a graça do futebol, e a partir desse entendimento cria, por exemplo, um fórum importante como o Observatório da Discriminação Racial no Futebol. A quem interessa que o futebol não perca o folclórico “tempero” da barbárie e do ódio ao outro? Valeu, Marcelo, o Observatório cumpre uma função saneadora e crítica na perspectiva de que o futebol, enquanto prodigioso espaço cultural, evolua de fato.

Por outro lado, e dando corda ao tópico do início, apontar para o jogador impulsivo ao mesmo tempo que se cobra dele o gesto exemplar, parece ser mais cômodo do que se reconhecer, ainda que brevemente, nesse torcedor irracional (não importa o clube do seu coração) que está sempre à beira de fazer e de vociferar as piores coisas diante do menor revés relacionado ao seu pathos enquanto convenção, isto é, um grupo de 11 caras brincando com uma bola com a intenção de provar que são melhores do que um outro grupo de 11 caras atrás da mesma bola. Afinal, a virulenta “cultura do futebol” – tolerada até aqui e cuja ressaca é repugnante em muitos casos –, essa cachaça mal destilada nos é servida há tempos sem que ninguém se pergunte se há alguma alternativa à disposição na carta de bebidas.

(*) Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com

 

 


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