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15 de janeiro de 2018
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09:21

Nem tudo é só curtição

Por
Sul 21
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Nem tudo é só curtição
Nem tudo é só curtição
“A internet é um lugar de encontros e ao mesmo tempo de desencontros e de ruídos que, em boa medida, minam a capacidade de julgamento”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Ronald Augusto (*) 

Os poemas atendem tanto às valências da palavra oral-corpórea, como às valências da palavra grafada na página defendida pela brancura, coisa visiva e mental. O leitor contempla as diversas dimensões da materialidade do signo poético enquanto objeto verbal. No ato de fruição dos poemas, posso escolher entre: a) ler em silêncio; b) ler à viva voz, imprimindo o meu acento e meu ritmo pessoais a essa ou aquela peça; e c) ouvir, comparando à minha a interpretação (em sentido musical) levada a efeito por um terceiro. Naturalmente, a escolha provisória por um desses modos de fruição performativa (digamos que tenha sido “b”) não implica o descarte nem a menor importância dos que ficaram à parte para depois (“a” e “c”). Tudo se prende à escolha e ao acaso.

O progressivo apagamento das fronteiras tanto entre os gêneros literários, quanto em relação às outras formas de arte, nos trouxe a essa condição atual em que os cruzamentos discursivos e culturais se tornaram um fato consumado. Nos dispomos, com frequência, à mestiçagem de linguagens. Não há mais uma distinção clara entre o que se entendia como alta cultura e o que hoje se entroniza como cultura pop ou de massa. Entretanto, se essa fronteira ainda existe, cruzamo-la de um lado para o outro sem a menor cerimônia e sempre indiferentes aos fiscais aduaneiros que, há muito, só fazem cochilar. Essa dimensão pop, por assim dizer, customiza a imagem da poesia no espaço virtual como lição da mais franca liberdade expressiva. Nesse lugar a poesia não é mais aquela. Entretanto, não há caminho fácil às musas e nenhum verso é livre para o verdadeiro poeta. No âmbito da internet ou, mais precisamente, no espaço das redes sociais, a poesia se torna uma possibilidade de polifonias às vezes ensurdecedoras, e em outras vezes lembra também um espelho rompido em mil fragmentos que jamais se unirão.

Com efeito, a internet é um lugar de encontros e ao mesmo tempo de desencontros e de ruídos que, em boa medida, minam a capacidade de julgamento. Toda a panglossia da poética virtual aparenta uma imensa e controversa antologia em movimento. Essa antologia multifária e monstruosa faculta ao leitor a possibilidade de testar os limites do seu apetite de linguagem: é um jogo de perde-ganha. O leitor se divide ou se desdobra em muitos tipos para conhecer seus convivas e estabelecer comparativos textuais. A operação é arriscada, pois tende a certa dispersão. Por outro lado, do aparente caos de vozes e desejos, emergem percepções e objetos verbais que podem oferecer sustentação e densidade significante ao esforço de leitura crítica.

Como acontece com qualquer gesto humano, quando se trata de levar a efeito um experimento, tudo é uma questão de lidar de modo funcional com a dialética do capricho e do relaxo. Isto é, o rigor e o torpor colaboram de maneira que um complementa o outro. Assim, aferrar-se a formalidades sem função no tocante ao gesto criativo oblitera as invenções advindas do improviso descompromissado. De outra parte, a total submissão ao fortuito retarda o acabamento ou o fecho de um processo que permitirá a continuação de outro.

A antologia permanente das poéticas da web se movimenta nessa fronteira delicada entre o alusivo e o explícito; entre o consenso e o dissenso; entre a contenção e a frouxidão; entre o poético e o não-poético; entre a ingenuidade e a lucidez; entre o risco e a convenção. Essas hesitações provocantes estão embutidas tanto no esforço interpretativo do internauta-leitor-seguidor, como nas práticas dos autores, isto é, nos objetos verbais resultantes.

A variedade, e, por que não admitir também, a desigualdade dos textos em suspensão em sites, blogs e postagens do Facebook, situam forçosamente a discussão sobre o fundamento da “qualidade poético-literária” em plano secundário. Podemos supor que toda essa irrupção de poemas e textões não despreza, evidentemente, o referido fundamento, entretanto, para todos os efeitos, digamos que apenas no momento não o elege como um fim absoluto. Afinal de contas, a eventual beleza, a “qualidade” sacudida que nem uma bandeira, os novos modelos de sensibilidade e o estranhamento sensível implicados em vários desses poemas e narrativas são instâncias possíveis e apreensíveis que entram na conta generosa da colaboração estético-afetiva do leitor. Isto é, o que identificamos como “a competência poética” (ou literária), em algum grau, aparenta vir à tona da linguagem, ao fim e ao cabo, por obra e graça da interessada e interesseira recepção do seguidor-leitor-internauta. Entretanto, isso não significa dizer que tudo vá terminar no sumidouro da curtição.

(*) Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com

 


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