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29 de janeiro de 2018
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10:00

Axévier, Contralamúria (*)

Por
Sul 21
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Axévier, Contralamúria (*)
Axévier, Contralamúria (*)
Aristides Klafke, Paulo Nassar, Arnaldo Xavier (de bolsa) e, atrás, Ulisses Tavares.

Ronald Augusto (**)

Linguagem de perturbante experimentação, uma poesia de invenção como a de Arnaldo Xavier (1948-2004) pode ser examinada não só no que diz respeito à estranheza da fissura aberta por ela em partes ou no corpo de determinado sistema literário. Vale dizer, dentro de um traçado de rupturas inaugurado pelo alto modernismo e que, desde então, parece ter se constituído no cânone da contemporaneidade, o que Arnaldo Xavier injeta de novo em tal corrente sanguínea? Temos aí, um ponto. Por outro lado, este exame nos permite compreender também um pouco do caráter e das imposturas desse sistema mesmo que, desde sua condição normativa e dogmática, manteve ou mantém, com relação às transgressões de Arnaldo, uma atitude, no mínimo, defensiva.

Sem receio, sem dever favor a ninguém e satisfeito por não ser confundido com os medíocres beletristas com lugar garantido em antologias temáticas, “todos [estes que] a tudo o seu logo acham sal” (Sá de Miranda), Arnaldo Xavier desbordou do molde para o qual parecia talhado. Para desgosto do poeta e estudioso da literatura negra, Oswaldo de Camargo, Arnaldo não se inseriu “claro e negro” na linhagem daqueles criadores que lograram “falar negro-poeticamente”. Arnaldo não aceitou a ideia de que a contrapartida aos esforços criativos de suas fabricanções, seria ele assumir – em atenção à expectativa de alguns dos seus leitores e antes que fosse tarde demais – um posto de honra nesta sorte de linha sucessória. Na economia da visada diacrônica, não há uma próxima chance, nem uma segunda escolha.

Xavier teria um lugar assegurado ao lado de, por exemplo, Solano Trindade, Adão Ventura, Geni Guimarães, Oliveira Silveira, Cuti e Éle Semog, seus companheiros naturais no âmbito adequado. Entretanto, o poeta, por assim dizer, pede “vistas” ou interpõe um grau de suspeição em ralação ao que parecia ser o coerente passo-a-seguir do seu percurso textual. E questiona a falsa dicotomia incrustada nas opções que se lhe apresentam virtualmente, ou seja: 1) entrar na idade do bom senso como mais um poeta negro afirmativo; ou 2) ser condenado à incomunicação, haja vista a aporia sugerida pelos grafismos e signos que escolhera como forma de linguagem. Não tanto pela companhia, Arnaldo Xavier declina do convite-logro feito por Oswaldo.

O fato é que sua linguagem, já francamente experimental desde os primeiros anos da década de 1970, pressupõe o poema como um experimento sígnico cujo acontecimento não pode se justificar apenas para servir às necessidades de certas interpretações, por mais bem intencionadas e relevantes que elas sejam. A impressão de “pura curiosidade” e de fracasso comunicativo que Rosa da Recvsa (1978), um dos seus primeiros livros, desperta em Oswaldo de Camargo – o crítico e entusiasta, par excellence, de uma literatura negra, competente, mas convencional, inserida no panorama antológico das letras brasileiras –, resume algo sobre o tipo de recepção que acabou prevalecendo entre os detratores de Arnaldo Xavier. Mas não havia só os imperitos inimigos se pronunciando a respeito. Muitos outros, felizmdente, admiravam ou admiram e propõem leituras novas divulgando e debatendo a poesia do transnegressor.

De outra parte, Arnaldo nunca fez questão de defensores. Aliás, ele não se defendia. Pelo contrário, mais atacava do que qualquer outra coisa. Arnaldo pautou criativamente os seus críticos retranqueiros. Os opositores é que se viam obrigados a tomar uma posição frente às intervenções sincrônico-valorativas do autor de LudLud (1997). Arnaldo Xavier inventou os seus detratores. A bem da verdade, dir-se-ia que jamais existiram, tão grande era a mediocridade com que se espojavam. No entanto, a arena formada sobre o ideário estético e étnico-político de Arnaldo Xavier, engendrou um ambiente e este ambiente – como disse Ezra Pound a propósito dos diluidores da sua época – é que conferiu a eles, seus adversários, uma existência. Ainda que volátil.

A bossafro da poesia verbal e não-verbal de Arnaldo Xavier questiona, às gargalhadas, a dimensão estrita e estreita da poesia e da prosa dos seus pares, onde se verifica a tolerância pós-moderna a limitar-se com o compromisso politicamente urgente, fusão que, ao fim e ao cabo, resulta em reducionismo de fast thinkers. Arnaldo, intelectual e militante negro (em sentido forte), isto é, avesso a qualquer tipo de afundamentalismo, não professava a profissão do líder galvanizador. Uma imagem possível para tentar descrever o paraibano Axévier é a do autor cuja obra e reflexões críticas estão tensamente imbricadas no debate referente aos dilemas de uma vertente negra na literatura brasileira.

Mas o aceite e a negaça de Arnaldo Xavier com relação a esta questão, se define, acima de tudo, por uma atitude problematizadora, metalinguística, intra e intertextual, do que por uma afirmação concludente ou utilitarista de uma causa que, de resto, se interessa em legitimar tópicos identitários através de uma ação literária entendida como testemunho de verdade étnica ou de realidades meramente vivenciais. Do ponto de vista da poética de Arnaldo, a literatura negra se configura como um debate que não precisa, a princípio, ser lacrado, assim às pressas. Exceto, talvez, do ponto de vista acadêmico, essa literatura se constitui em algo que não tem de ser resolvido. Afinal de contas, um poema de verdade não admite solução.

Consciência de linguagem requer um severo sentido de ironia contra si mesmo. Arnaldo era radical, um poeta radical. Identificava, a um só tempo, questões de forma e de fundo. Feito Yeats, não separava o dançarino da dança. O gesto radical se projeta sobre a linguagem. Não há linguagem desprovida de pensamento. E o pensamento instala o mundo entre parênteses justamente para melhor pensá-lo. A poesia de Arnaldo Xavier é a transnegressão dos limites representacionais da linguagem, fronteira exusíaca entre mundo e signo.

Ao propor novas expressões negras, numa espécie de transe intertextual onde colaboram tanto a logopeia nagô de Muniz Sodré, quanto a fanopeia jazzística de Spike Lee, Arnaldo propõe, em fim de contas, novos e vastos pensamentos sem fios. Com efeito, sua poética repercute no seu pensamento conferindo-lhe um viés experimental, inoportuno e negativo. Algo vivo. Axévier era o dissenso via intersemiose, o desarraigamento de si, o solapar das evidências ferreamente construídas sobre retóricas da identidade, não por acaso erísticas, e, por sua vez, pavimentadas sobre tensões históricas e sociais retidas num pano de fundo menos utópico do que reformista. Arnaldo torceu o gasnete à eloquência pictórica do conteúdo, suas palavras exorbitaram iconicamente o contorno dos sintagmas, viraram desenhos sintéticos do seu pensamento-arte.

(*) Este breve ensaio [agora revisto e um pouco ampliado] foi estampado pela primeira vez em Roda – Arte e Cultura do Atlântico Negro (2006 ou 2007), revista editada por Ricardo Aleixo e mantida pela Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte.

(**) Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com

 


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