Colunas>Ronald Augusto
|
18 de dezembro de 2017
|
09:15

A propósito de umas tretas sobre mestiçagem

Por
Sul 21
[email protected]
A propósito de umas tretas sobre mestiçagem
A propósito de umas tretas sobre mestiçagem
“É notório o baixo índice de tolerância do senso comum com relação ao negro como possibilidade de autoimagem”.

 Ronald Augusto (*)

1. De saída, algo que já se tornou um clássico. A testemunha negra [no caso Joel Rufino] favorável ao ponto de vista do branco [no caso o Antropólogo, doravante assim referido] que, nesta situação-discussão, pretende provar que os demais negros estão enganados ao recusarem a noção de mestiço e seu dégradé como alternativa à distinção-cisão entre negros e brancos que, há mais de 300 anos, representa ou descreve nossos conflitos étnicos fundados sobre um antiquado raciocínio de base racial. Nestas situações é conveniente que se conceda, de bom grado, autoridade e competência a alguma testemunha negra que venha, claro, abonar o ponto de vista do objetor, justamente porque a dramaticidade desse tipo de depoimento serve para reforçar a intenção de desqualificação das lutas e posições dos negros (reduzidas a mero ressentimento) contra todas as formas de racismo disfarçado.

2. O que o Antropólogo chama de “racialismo de resultados”, eu chamo de ações positivas e institucionais que visam diminuir as desigualdades entre negros (historicamente prejudicados) e brancos (historicamente beneficiados), vide as cotas raciais, por exemplo, que representam, para alguns, uma injustiça. Porém, se quisermos considerar as cotas raciais como uma injustiça, podemos dizer, com John Rawls [1], que elas seriam a princípio injustas – mas apenas para quem jamais teve a chance de sofrer qualquer tipo de desvantagem –, só que necessárias tanto para reparar como para evitar injustiças ainda maiores no que diz respeito às oportunidades ofertadas à população negra/parda brasileira seja em seu presente, seja em seu devir.

3. A “mulatice” é um conceito fraco que não resolve a crueldade do dégradé para o mais claro que serve como vantagem ou trunfo à estima social. É notório o baixo índice de tolerância do senso comum com relação ao negro como possibilidade de autoimagem; por outro lado estamos familiarizados com a maior tolerância desse mesmo senso comum com relação à morenidade/mulatice enquanto clichê identitário da “brasilidade”.

4. A proposição “Obama jamais se elegeria presidente de países africanos como Angola ou a Nigéria” não faz sentido nenhum. Segundo o Antropólogo, os eleitores (negros) dessas nações não votariam num candidato mestiço. Também não sei de onde o estudioso retirou essa informação de que “o mulato é vítima de terrível preconceito em países negroafricanos”. Onde estão esses dados? Se alguém souber algo a respeito que me apresente.

5. A ilusão da pós-racialidade: dizer que somos apenas mestiços mais ou menos escuros não convence o racista. Dependendo das circunstâncias o mestiço mais escuro será tratado como “negro”; por outro lado, o racista tratará o mestiço mais claro apenas como não-negro, e até segunda ordem. Historicamente os desrespeitos se plasmam a partir dos conflitos de reconhecimento e autorreconhecimento entre negros e brancos em luta por estima no interior da sociedade.

Oportunidades são oferecidas ou negadas em função do sujeito ser menos ou mais negro, e mesmo que o indivíduo mestiço mais claro tenha mais chances de êxito, em algum momento sua porção mais escura será mencionada a título de cobrança ao obséquio da confiança que lhe foi concedido. Quando, por exemplo, um mestiço/mulato se autodeclara negro no embate político contra o racismo, ele não está operando com o mesmo conceito de raça que um supremacista opera. Lutar contra o racismo não implica a crença no conceito já vencido de raça. O racista é que precisa dessa crença, aliás, se ele não acreditasse que há raças humanas, então ele não poderia criar narrativas de justificação nem reivindicar a superioridade da sua raça em relação às outras. Parece óbvio, mas é necessário lembrar essas coisas para que se evite a transferência desonesta de responsabilidades. Expressões como “coisa de negro”, “negrice” etc, são formas cunhadas e reiteradas pelo pensamento racista na tentativa imputar ao negro a invenção de um essencialismo racial com que se definiria sem grandes problemas.

6. Por fim, os movimentos negros brasileiros, os movimentos negros estadunidenses e os países negroafricanos saídos de suas lutas contra o colonialismo, estariam todos errados, todos, porque, segundo o Antropólogo, junto com a recusa da mulatice estariam recusando na verdade o fato biológico da mestiçagem. Trata-se de uma falácia. Reconhecer que em termos genéticos todos nós somos mestiços, não invalida a dimensão político-cultural implicada no autorreconhecimento das identidades étnicas das pessoas. A objeção do Antropólogo tenta passar a ideia de que afirmar-se negro resultaria por ligação direta na instauração de uma espécie de entidade biológica cuja essência (espelhada em modos de ser no mundo) seria irredutível a outras. Entretanto, afirmar-se negro significa, entre outras coisas, afirmar em primeiro plano a dignidade de um indivíduo individuado capaz de deslocar-se cultural e politicamente em interação crítica e inventiva tanto com outros indivíduos (próximos ou não), quanto com os dilemas do seu passado e do seu presente que convergem num aqui precário e movediço.

(*) Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/

[1] John Rawls (1921-2002), filósofo liberal estadunidense. Autor de, entre outros, Teoria da justiça (1971) e Justiça como equidade (1985).


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora