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4 de dezembro de 2017
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09:40

A Feira do Livro não é mais aquela?

Por
Sul 21
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A Feira do Livro não é mais aquela?
A Feira do Livro não é mais aquela?
Ronald Augusto: A participação de Wole Soyinka e a vinda de Conceição Evaristo (foto) deram um ânimo novo ao esforço de afirmação da produção literária negra. (Foto: Otávio Fortes/Câmara Riograndense do Livro/Divulgação)

Ronald Augusto (*)

No ano de 2016 os organizadores da Feira do Livro de Porto Alegre foram sacudidos por uma pergunta simples e básica que lhes fiz de forma transparente, a saber, quantos e quais escritores negros participariam do evento? A pergunta veio a público em minha antiga página do Facebook. Como se fora uma espécie de atualização de surpresa, a questão fez o sistema travar. A tal ponto que, até hoje, só houve resposta pública e articulada à minha pergunta da parte da coordenação da área infantil. A coordenação da área adulta, entretanto, parece ser adepta da máxima segunda a qual é melhor realizar do que falar, acontece que além de não falar (responder à pergunta) a referida coordenação naquele ano realizou pouco no que respeita à atenção que se exigia aos escritores negros.

Ao mesmo tempo, como a repercussão foi grande, em que pese o questionamento se resumir a duas linhas e, além disso, com os agentes culturais ainda com a memória fresca a respeito do caso da Flip das mulheres, cuja curadoria não convidou uma escritora negra sequer para participar da edição de 2016, minha indagação teve eco e se transformou em um artigo solicitado e publicado primeiro em Zero Hora e, em seguida, no site Nação Z e também aqui no Sul21. Depois o artigo apareceu em outros veículos de mídia digital. Para a mesma edição do referido diário o prosador Jeferson Tenório escreveu um texto debatendo o problema do pouco espaço oferecido aos escritores negros e a correlata dificuldade de reconhecimento da produção desses autores.

O sistema não foi devidamente atualizado naquele ano. O discurso inócuo de que a literatura não tem cor ainda comove os promotores culturais, inclusive porque eles não sabem lidar com conflitos, mas apenas gerenciar verbas e atividades que tenham “retorno de público”, seja lá que diabos isso signifique. De qualquer modo, em 2016, meio que em cima da hora, a Feira convidou um ou outro escritor negro para mostrar serviço e ampliar a quantidade de representantes da vertente negra. Enjambraram, isto é, ofereceram espaço para o II Encontro de Escritores Negros que, até hoje me parece um encontro um tanto vago e sem um caráter definido, ademais, o coral do Cecune seguiu consolidando sua participação no evento e aconteceu ainda uma edição do sarau do Sopapo Poético; acho que foi isso.

Este ano a história foi um pouco diferente. Os mais otimistas pode ser que digam que foi bastante diferente. O tempo dirá se as mudanças vieram ou não apenas para não mudar. De minha parte decidi não debater mais com a coordenação da Feira, justamente por causa do silêncio teimoso de 2016 e por sua disposição em tratar o assunto só nos termos que seriam do seu interesse. Consta que Jeferson Tenório tentou estabelecer um diálogo, porém a coisa andou e não andou, ou seja, esbarrou na mesma disposição em não reconhecer que até então os esforços das coordenações da Feira não correspondiam às necessidades de visibilidade e representação dos escritores negros. Por outro lado, outros escritores entraram na discussão e levaram suas propostas e demandas. O sistema parece ter ficado menos travado e algumas atualizações foram baixadas.

Por esta razão a 63ª Feira do Livro apresentou um pouco mais de diversidade. Além de vários autores em cena ligados ao III Encontro de Escritores Negros, do envolvente sarau do Sopapo Poético, das performances dos slammers, é de ressaltar a participação totêmica, mas também algo distante, de Wole Soyinka e a vinda de Conceição Evaristo que, por sua vez, deram um ânimo novo ao esforço de afirmação da produção literária negra perante o panorama cultural da cidade. A escrita das mulheres e a poética LGBT também tiveram espaço na Feira, não obstante as ameaças de represália do MBL direcionadas aos representantes da literatura homoafetiva. Elisa Lucinda e a filósofa Djamila Ribeiro se fizerem presentes e enriqueceram os debates relativos ao respeito pela diversidade. Grupos distintos promoveram dois saraus em que a poesia de Oliveira Silveira foi o centro das atenções. Enfim, houve uma melhora.

O passo seguinte é pôr em perspectiva crítica e criteriosa algumas coisas, por exemplo: a) trabalhar para que a Feira torne mais transparente os critérios relativos ao valor e a distribuição dos cachês; b) garantir a continuação dessa diversidade e fazer com que a presença de escritores negros seja algo naturalizado, normal; c) que essa literatura não seja festejada como uma curiosidade, nem como algo meramente temático; d) que a presença de escritores não seja usada como uma espécie um trunfo para o evento, no sentido de mostrar como os organizadores têm boa vontade e tolerância etc – afinal, precisaram se mexer porque foram empurrados por nós – ; e) que a situação do escritor negro num lugar de prestígio não tem que ser necessariamente algo da ordem da excepcionalidade; f) que os escritores negros sejam convidados para debater com outros escritores os assuntos e temas literários mais diversos. Em suma, é preciso convencer as coordenações da Feira que a partir de agora não tem mais volta.

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(*) Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente no Sul21.

 


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