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25 de setembro de 2017
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13:00

Literatura negra e fogo amigo

Por
Sul 21
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Literatura negra e fogo amigo
Literatura negra e fogo amigo
Há uma percepção de que a verdadeira arte se confunde com a vida e isto, bem ou mal, serve de critério para avaliarmos uma infinidade de manifestações criativas, porém talvez com uma exceção: a literatura negra.

Ronald Augusto

Podemos distinguir, esquematicamente, dois tipos de artistas. Imaginemos, de um lado, aquele espécime cuja arte se mantém muito rente à vida e ao real; e, de outro, o sujeito que entende a arte como uma transfiguração da circunstância, isto é, sua obra nos faz supor uma indisposição com relação ao real ou uma inclinação para a invenção de um mundo alternativo. O senso comum, entretanto, parece disposto a dar mais crédito ao artista do primeiro tipo, ou seja, aquele para quem não há senão o interesse na realidade imediata. Ao contrário do representante do segundo tipo, este artista, a princípio, não pode ser um fingidor. O fruidor admira o poeta que suja suas ferramentas inspecionando os transes do vivido. Assim, o objeto de arte se transforma num sucedâneo sentimental e público de uma singular experiência existencial.

Há uma percepção de que a verdadeira arte se confunde com a vida e isto, bem ou mal, serve de critério para avaliarmos uma infinidade de manifestações criativas, porém talvez com uma exceção: a literatura negra. Explico-me. Muitos não aceitam que o qualificativo seja aplicado à noção de literatura, baseados na crença de que a arte não tem cor, nem sexo ou enjoamentos de classe. Ora, mas ao não dar crédito à literatura negra, o objetor, que deposita confiança na unidade entre vida e arte, cai em contradição, pois sua posição, que implica a recusa de um eu enunciador que se assume negro no próprio texto, o fará negar, em fim de contas, a concepção de que a arte mais genuína é aquela que confina com a vida. Em outras palavras, um escritor que, além de não dissimular sua condição de negro, resolve tratar em sua literatura de questões como o preconceito racial ou as nem tão veladas tensões étnicas da sociedade brasileira não seria um espécime do primeiro tipo de artista? Sua arte, a bem dizer, não nos faz supor um mergulho radical num aspecto concreto da existência? O impasse tem a ver com a recepção. E, às vezes, a recepção, mais do que desinformada, se revela maledicente.

A propósito da obra Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (Ed. UFMG, 2011), Ferreira Gullar, uma feita, escreveu resenha onde afirmava não ter cabimento falar de literatura negra, porque, em sua opinião, os africanos que vieram para cá não tinham literatura e que isso não fazia parte de sua cultura. À época a polêmica foi grande e frutuosa. E Gullar foi o maior beneficiado, já que, depois da afirmação preconceituosa, recebeu informações de todos os lados sobre as tradições orais e a riqueza dos discursos formados a partir de signos não-verbais, presentes tanto na arte antiga, quanto nas diversas culturas do ocidente e do oriente. Gullar, neste episódio bizarro, não reconheceu a importância da cultura e do conhecimento orais seja para o africano, seja para a sua vasta diáspora. A capacidade de produzir tanto formas de pensamento, como de discursos literários, não pressupõe de maneira absoluta a tecnologia da escrita.

Contra tal pano de fundo é que julgo importante discutir os limites e as virtudes da literatura negra. Uns pensam a literatura negra desde a perspectiva de lances identitários através dos quais a prática literária se efetiva como testemunho de verdade racial. Do ponto de vista da criação e da reificação de uma literatura negra, podemos afirmar que isso se limita com um esforço coletivo e extraliterário que tem em vista, antes, redefinir um pertencimento etnopolítico, do que propor uma forma específica de linguagem. É como se a vida, mais uma vez, tomasse a dianteira, restando à arte um papel menor.

Assim, é fundamental não perder de vista nessa discussão um dos termos do nosso conceito, a saber, a literatura – e aqui encareço a acepção artística contida em sua área semântica. E sendo literatura, suas determinações se apresentam por meio da linguagem como um jogo equívoco que nomeia e transfigura o real. As relações entre um poema e seu tempo não se prestam a mero reflexo inventivo de realidades sociais dadas. O escritor se dirige aos seus contemporâneos, entretanto isto não significa que ele, em seu pensamento criativo, se reconheça contemporâneo ou sintonizado com seus destinatários. Vale dizer, o mundo representado é, a um só tempo, emoldurado e sacudido pela linguagem. As imagens do objeto literário são lacunares, servem de recortes possíveis e de transfigurações desobedientes do mundo tanto vivido, quanto representado.

O que de fato interessa, entretanto, é o necessário comentário crítico a uma espécie de efeito legitimador que – no respeitante a uma descrição-legitimação dessa literatura, negra – visa a transformar em paradigma aquelas obras em que se observa, em primeiro plano, à maneira de um pórtico, a afirmação da identidade, ou de um nós demasiadamente comprometido e, de resto, difícil de verificar, mas indispensável em termos de demanda de um grupo diante de uma situação político-social conflituosa e/ou desfavorável.

Um efeito observável nesse esforço de legitimação, de vez e voz a serem conquistadas, talvez seja o seguinte: o escritor negro que se apresenta à discussão é tolerado como útil depoente; seus escritos, ao fim e ao cabo, se revelam como meras provas, documentos, literatura como testemunho, misto de verismo e depoimento correto: lugar de fala estetizado.

Não obstante o que quer que o escritor realize deva ser chamado em princípio de – pausa para a palavra a seguir – arte, restam, ainda assim, aqui e ali, análises e intervenções que insistem em colocar sua criação artística a serviço de “causas e compromissos históricos”. Pode-se argumentar que o que vem após a palavra arte, isto é, “de matriz africana”, “negra”, “feminina”, é que rende assunto a essa espécie de fogo amigo. O que parece ser fundamental admitir é que, antes de qualquer coisa, literatura negra só pode ser mesmo literatura, isto é, uma forma de discurso que tem sua autonomia parcial conectada criticamente às determinações e contradições do campo estético em sua relação não causal com a sociedade.

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Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente no blog POESIA-PAU. 


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