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19 de outubro de 2015
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09:57

Ainda Baudelaire, esse poeta não francês

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Sul 21
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Ainda Baudelaire, esse poeta não francês
Ainda Baudelaire, esse poeta não francês

baudelairePor Ronald Augusto

Paul Valéry em “Situação de Baudelaire”, ensaio onde situa e recorta a singularidade do autor das Flores do mal contra um pano-de-fundo romântico, que à época experimentava o seu auge, sustenta que “com Baudelaire a poesia francesa ultrapassa as fronteiras da nação. Ela – continua Valéry – é lida no mundo inteiro”. Baudelaire consegue essa proeza, segundo o autor de Ébauch d’Un Serpent, porque sua poesia não dá continuação a alguns dos traços da tradição literária/cultural francesa, tais como: o medo do exagero e do ridículo; certo pudor na expressão (poder de expressão?); a tendência abstrata do espírito; as harmonias sutis demais; uma elegância e uma pureza excessivas no trato do discurso.

Assim, por ser a linguagem de Baudelaire (contente de tropeçar “sur les mots comme sur les pavês”, isto é, por ser mais suja) algo refratária a essas “manias” congeniais à língua e ao gênio franceses, ela “impõe-se como a poesia própria da modernidade”. E a modernidade está marcada por essas transações de fronteira. Transculturações. Baudelaire importa e incorpora, por exemplo, a poética de Poe para, mais adiante, num movimento de assimilação ou de plagiotropia, fazer a sua “poesia de exportação” (gr. plágios, a, on ‘oblíquo, que não está em linha reta, que está de lado; transversal) – tomo de empréstimo, aqui, as célebres noções da antropofagia cultural do poeta do modernismo de 22, Oswald de Andrade.

Inspirado em Mallarmé, Paul Valéry diz que quem fala no poema é a própria linguagem e não o poeta: a música calada dessa “estranha esgrima”. Se, com efeito, não há nem mesmo um ego scriptor por detrás do poema, com quem, afinal de contas, o leitor manterá uma interlocução senão consigo mesmo numa atitude de leitura inventiva, colaborativa? A ambiguidade calculada do poema pressupõe um leitor também crítico e atuante. Leitor interessado em produzir sentidos a partir do seu desejo de linguagem. Por essa razão poderíamos reformular a ideia mallarmaica dizendo o seguinte: quem fala, em última análise, no poema é o leitor, esse intérprete de uma partitura que reúne um conjunto de signos abertos à sua decifração. O poeta-crítico é uma das dimensões do leitor-crítico.

Segundo Paul Valéry, “a obra romântica, em geral, suporta muito mal uma leitura lenta e sobrecarregada com as resistências de um leitor difícil e refinado”. Para Valéry, Baudelaire era esse tipo de leitor. Baudelaire e, mais ainda, Paul Valéry vivem o dilema da experiência poética no seio da modernidade. Ou seja, embora peritos artistas do gênero, e tendo em vista a tradição e o entorno a partir dos quais produzem sua arte e sua crítica, não se consideram mais como poetas (naquele sentido consagrado pela antiguidade), mas, antes, se reconhecem como uma representação controversa, como a problematização arrojada desse imaginário.

Se admitirmos sem controvérsias que o autor das Fleurs du mal veste com elegância a casaca do poeta-crítico, então não seria despropositado aventar também a hipótese de um Baudelaire “construtivista”. Segundo Walter Benjamin, Baudelaire reivindica para a arte moderna uma “força de expressão” característica da antiguidade, e essa força se limitaria à construção. E Baudelaire, tendo em mira a sua produção e a dos seus pares, afirma: “Ai daquele que estuda outra coisa na antiguidade que não a arte pura, a lógica, o método geral”.

Esse Baudelaire sincrônico, que onera e projeta o passado como uma figura de objetos “arte-feitos”, não se distancia da noção de que a poesia, para a poética clássica e neoplatônica, corresponde ao belo imperfeito, pois o que predomina nesse gênero é a disposição para a ficção e modelos imaginativos particulares, portanto não faz sentido que se lhe exija qualquer veleidade pedagógica ou moralizante. Platão, no entanto, tem em mente o belo perfeito, a obra poética em que se realiza a união do útil ao agradável – por seu turno, o poeta francês põe luxe e volupté em relação com a beleza, agora bizarra, da modernidade.

Como poeta-crítico, Baudelaire quer “as essências e as medulas” da antiguidade ou das tradições à sua disposição, vale dizer, seu apetite crítico e estético ataca a parte viva do acervo; e, portanto, ele o (re)inventa. Como leitor fervoroso (parcial) do passado criativo, tenta ser um intérprete de aspectos bem delimitados do legado, com vistas a transportar para o seu presente, o substantivo de uma tradição em movimento e onde se vê implicado.

.oOo.

Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e Nem raro nem claro (2015). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente no https://www.sul21.com.br/.


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