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6 de outubro de 2017
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11:02

Canções de compromisso: Sem terra

Por
Sul 21
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Canções de compromisso: Sem terra
Canções de compromisso: Sem terra
Finalizei esta canção, gostei dela, mandei para um festival nativista do Rio Grande do Sul de uma cidade da chamada “região celeiro”. Foi recebida com uma certa frieza… | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Raul Ellwanger

Certa vez me chamaram para fazer a música de um filme sobre os colonos sem-terra do Rio Grande do Sul. As imagens do copião original eram espetaculares, tanto como retrato de uma realidade dramática, como pelo testemunho das injustiças sociais. Depois, o convite foi esquecido pela diretora. Mas não as imagens por mim.

Se, como diz o ditado, “todo se cambia y nada se pierde”, em minha memória algum esboço ficou dormindo como a semente que sabe esperar seu momento na terra. Voltei a mexer no tema, finalizei esta canção, gostei dela, mandei para um festival nativista do Rio Grande do Sul de uma cidade da chamada “região celeiro”. Foi recebida com uma certa frieza…

A letra põe logo duas contradições: a de semear sem terra e a de fazê-lo no asfalto. É imagem impressionante a verdura do soja chegando à beira do asfalto, e sem ninguém por perto. Contrasta muito com a “cidade de lona”, acampamento desordenado de barracas de plástico negro que se espreme entre a plantação e o acostamento das rodovias. Logo a letra mostra a oposição entre a esperança e o alambrado, e o conflito do arado que quer arar e deve ficar (p)arado. No refrão, se chocam o tanto de gente, o tanto de terra e nenhum colono por dono.

O tema musical se arma em torno de uma linha descendente dos baixos do violão, num cromatismo que obriga a incluir certos acordes extratonalidade, como no compasso 3 com Em7/Bb, no compasso 6 com D7  e Bb7, assim como no compasso 8 com Am7 ou C.  Para desmarcar a segunda parte, modula a Dm no compasso 11 e  segue com as descidas por acordes tensos, como aparece de forma aguda com  F/A e Eb/G  no compasso 16, fazendo uma chamativa apoiatura harmônica, eficaz para densificar a letra. Isto se fará notável na última estrofe quando, num salto abrupto de sétima menor, o canto será um grito irado de “sem terra é o que é!”.

Sendo a conquista da terra uma luta coletiva levada por famílias, tento mostrar a mulher como ativista e agente econômico, além da mãe e esposa. O pão, a esperança, a negação do favelamento infantil nas periferias da cidade, a presença da religião no movimento, o sonho ancestral de acabar com arames e cancelas, conformam todo um universo pessoal e social destas valentes mulheres.06

A última estrofe diz da impotência e confusão do autor, algo assim como um cidadão classe média que não está entendendo nada. Diz do desgaste desta vida, no duplo sentido do gosto do “chimarrão que não sabe”, da mistura desconexa de ritmos, do que é e do que não é, para terminar dizendo o que realmente é: é a falta de terra, cacete!

Na noite finalíssima do festival, quando os jurados saíram da “sala secreta”, um deles me segredou: “Ganhaste o primeiro lugar”. Ao comentar isto com um dos músicos meus acompanhantes, sendo ele já demasiadamente escolado nestes torneios, alertou: “Mas espera, há muitas voltas entre a decisão do júri e o que será dito no microfone”. Tinha razão ele…

Sem terra

Raul Ellwanger

Quem viu os colonos sem terra
Semeando no asfalto da serra
Colheitas de soledade
Sem terra, sem terra, sem terra
Amassando o pão da esperança
No arame da imensidão
Arado, perigo, parado
Sem trigo, sem trigo e sem chão

Sem terra, sem terra, sem terra
No meio de tanta terra
Que nunca se sabe o dono
De tanta terra sem colono

Mãe, cozinheira, colona
Curtida no barro da espera
Quem viu tua cidade de lona
Sem erva, sem erva, sem erva
E a gurizada guaipeca
Semente da terra natal
E nunca pivete em favela
Pivete em favela na capital

Louvado será Jesus Cristo
E paz entre os homens na terra
Louvado colono corisco
Que há de abrir toda cancela
Na invernada do infinito
Da plantação aquarela
Do colono aqui faminto
Do sal, do sal, do sal da terra

Meu coração violeiro
Do chimarrão já não sabe
Cantigas do velho Guaíba
Não sabe, não sabe, não sabe
Se é chamamé, o que é, o que é
Se é um bugio, que-os-pariu, o que é
Milonga, milonga, milonga não é
Sem-terra, sem-terra é o que é.


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