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8 de setembro de 2017
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10:00

Canções de compromisso: Cortejo

Por
Sul 21
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Canções de compromisso: Cortejo
Canções de compromisso: Cortejo

Por Raul Ellwanger (do livro Nas Velas do Violão)

O gênero da marcha-rancho é um clássico da música popular brasileira, mas te falo daquela muito popular mesmo, de cantar até enrouquecer nos tempos dos carnavais. Num escrete das 11 mais queridas pelo povo, com certeza estarão Noite dos mascarados e Estrela d’alva. Entretanto, o gênero deixou de usar-se sem algum motivo claro, talvez pela decadência do carnaval de salão.

Quando conheci o livro O Poço do Calabouço, tive uma empatia direta com a obra de Carlos Nejar, e prontamente compusemos este Cortejo, muito adaptado ao início da lerdíssima redemocratização em nosso país. Voltando do exílio, a letra bateu comigo. Para a vida que chega (o retorno), o coração do poeta não alcança, neste emprego sem salário (militância), mas com preço (perseguição). Duvida de si o poeta, ao não saber quanto merece, confuso entre a insurreição e a prisão, perplexo entre o porvir e a morte. Só uma coisa é constante: seu coração andarilho, sua alma de andejo, a eterna aventura.

Oposta à marcha binária, de modo espontâneo brotou nas cordas do violão um tempo raro, uma espécie de marcha-rancho de compasso ternário que ocupou toda a estrofe temática. Após algum tempo, vim a perceber a presença da zamba argentina integrada junto ao nosso rancho, fenômeno que vai reaparecer em outras criações minhas. Há um diálogo entre o andar arrastado e solene do rancho e a elegância feminina do gênero argentino. Aqui se pode verdadeiramente falar de uma plausível fusão de linguagens, diferente do zumbi que resulta quando colocam um bate-estaca eletrônico num tango tradicional.

O prazer amoroso que sente o violeiro quando empunha, abraça, acaricia e estimula seu instrumento é parte do processo compositivo, como ocorreu com o ritmo deste Cortejo. Ao divagar sem objetivo pelas cordas, pelos acordes, pelos andares, recebe o compositor insinuações, respostas e sugestões que de pronto são fisgadas por seu ouvido e terminam por gerar uma canção. Ou não…

Numa entrevista clandestina gravada em Buenos Aires, que publiquei sob pseudônimo no semanário Versus a pedido de Marcos Faerman, disse-me Alfredo Zitarrosa que muitas de suas canções foram feitas “rascandose la panza de la viola”, como procurando na madeira um bom motivo, uma boa melodia, um bom refrão.

Para o desenvolvimento da segunda parte da canção, é retomada a divisão binária do compasso, dentro da tradição, quando o violão de Rafael Rabelo leva o balanço. Com uma atrativa cadência harmônica, após repetir a primeira quadrinha a melodia vai se intensificando para preparar a exclamação de “meu coração é andejo”. Logo vem descair e descansar no silêncio da letra e repouso melódico, deixando ressoar em nossos ouvidos a maravilhosa palavra “andejo”.

Cortejo

Raul Ellwanger – Carlos Nejar

Abram alas
Que a vida vem chegando
Abram alas
Que a vida vem chegando
Meu coração é andejo
Chega à vida mas não chego

De todos meus empregos este teve melhor preço
Abram alas que não sei sequer quanto mereço
Talvez um porte de arma, uma licença de preso
Ir pela tarde sem tarde, a carabina posta ao peito

Seguir o curso das coisas conhecendo bem o reino
Servir de ponte ou de tumba
Meu coração é andejo
Quando cessa abre asas no silêncio


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