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4 de agosto de 2017
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10:00

Canções de compromisso: Eu só peço a Deus

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Sul 21
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Canções de compromisso: Eu só peço a Deus
Canções de compromisso: Eu só peço a Deus

Por Raul Ellwanger (do livro Nas Velas do Violão)

O compositor argentino León Gieco fez e gravou esta canção quando os ditadores Videla e Pinochet, ao final de 1978, quase arrastaram seus países a uma guerra criminosa, burra e tragicômica, não fosse pelo sofrimento de ambos os povos. A canção ficou ali, dormindo como semente, pois o próprio León pagou uma espécie breve de exílio (incluindo passagem por Porto Alegre). No retorno triunfal de Mercedes Sosa à Argentina após a redemocratrização, o tema foi gravado por ela ao vivo com León nos famosos Concertos do Cine Opera, e assim empalmou com a ressaca da guerra das Malvinas e a alegria do fim da ditadura: sucesso estrondoso.  Foi sendo espalhada pelo mundo, hoje tem versões em mais de 50 idiomas.

Nas cinco estrofes, León vai enunciando as grandes ideias dos Direitos Humanos uma a uma, ao reiterar que não quer ficar indiferente à dor, à mentira, ao exílio, à impunidade, à guerra.  No disco vinil Gaudério gravei minha versão em português, com arranjo de Jota Moraes e voz de Bebeto Alves.  Segundo León, a letra vertida está mais explícita e compreensível que a original, pois tem que recorrer a menos metáforas anticensura, em especial nos versos da “injustiça”. Eu só peço a Deus foi gravada em português por Beth Carvalho e Mercedes Sosa e uma dezena de outros intérpretes, sendo entoada com frequência em eventos de Direitos Civis.

Em maio de 2010, num concerto de 12 horas com xous de Pablo Milanes, Gilberto Gil, Toto Mamposina, Victor Heredia, Jaime Ross, Los Jaivas, convidado por León cantei com ele Solo le pido a Diós ao lado de Raul Porchetto, Luis Gurevich e Gustavo Santaolalla, na esquina de 9 de Julho com Corrientes, o coração de Buenos Aires, ante 2 milhões de pessoas, na comemoração do Bicentenário da Independência argentina. Deixamos o cenário às 5 horas da manhã, saímos com León e sua banda caminhando Corrientes acima, relaxando, exaustos e felizes entre aqueles papéis vadios que rolam nas calçadas de madrugada. Eles subiram no seu ônibus e iniciaram uma viagem de mais de mil quilômetros ao noroeste do país, pois naquela mesma noite tinham que apresentar-se num pequeno festival da província. Vida de músico. Já em dezembro de 2013, no encerramento do Fórum Mundial dos Direitos Humanos, em Brasília, tive a honra da cantar esta canção a capella ante delegações de todos os continentes, sob o olhar doce e generoso da abuela Estela de Carlotto.

Prevenindo-se ante as ameaças reiteradas pessoalmente pelo general Harguindegui (ou seria Etchecolatz?), diretor da Polícia Federal argentina, no dia 11 de outubro de 1977 León aportou de manhãzinha em Porto Alegre, com sua inseparável Alicia Sherman e a pequenina Lisa. No endereço indicado do Bairro Montserrat, ninguém os esperava. Ali ficaram pelas escadarias externas do prédio até meia noite, quando cheguei em casa em minha nova condição de papai, após passar o dia na maternidade. Realmente, apesar dos esforços de Nana, Santiago demorou muito a nascer.

Eu só peço a Deus

León Gieco – Versão Raul Ellwanger

Eu só peço a Deus
Que a dor não me seja indiferente
Que a morte não me encontre um dia
Solitário sem ter feito o que eu devia

Eu só peço a Deus
Que a injustiça não me seja indiferente
Pois não posso dar a outra face
Se já fui machucado brutalmente

Eu só peço a Deus
Que a mentira não me seja indiferente
Se um só traidor tem mais poder que um povo
Que esse povo não esqueça facilmente

Eu só peço a Deus
Que o futuro não me seja indiferente
Sem ter que fugir desenganado
Pra viver uma cultura diferente

Eu só peço a Deus
Que a guerra não me seja indiferente
É um monstro grande e pisa forte
Toda a pobre inocência dessa gente.


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