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10 de outubro de 2017
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18:54

Catalunha: Reflexões laterais

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Sul 21
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Catalunha: Reflexões laterais
Catalunha: Reflexões laterais
Acompanhamos, todos, preocupados, a situação criada pela decisão do povo catalão e suas principais autoridades em declarar a independência da Catalunha da Espanha. Será o prenúncio de uma nova Guerra Civil naquele país? Em pleno século XXI? Senão Guerra Civil, uma verdadeira revolução, não social mas política? Na foto: Bombardeio de Barcelona, maior cidade catalã, em março de 1938 pelas tropas fascistas italianas de Mussolini, apoiando a incursão franquista. Arquivo da Força Aérea Italiana.

Paulo Timm

A história do pensamento político consiste, sobretudo, na invenção de instrumentos institucionais destinados a fazer  que quem possua um poder qualquer não tenha condições de abusar dele. Norberto Bobbio, em “Separatismo Liberal”, La Stampa, fevereiro de 1994.

Já não se trata da América (USA) dirigir o mundo, mas do mundo se transformar em América. Thomas Bernett citando Régis Debray in “Num tecido azul com doze estrelas douradas”, Le Monde, edição portuguesa, agosto de 2017.

“O que Rajoy não compreende é que nas democracias do século XXI não é possível garantir, pela força, a unidade dos Estados, nem mesmo em nome de preceitos constitucionais. Só como forma de prevenir uma violência maior se legitima o uso da violência em democracia.” Alvaro Vasconcelos em “Espanha Invertebrada”

Acompanhamos, todos, preocupados, a situação criada pela decisão do povo catalão e suas principais autoridades em declarar a independência da Catalunha da Espanha. Será o prenúncio de uma nova Guerra Civil naquele país? Em pleno século XXI? Senão Guerra Civil, uma verdadeira revolução, não social mas política?

Não vou me deter sobre as razões da Catalunha, ou entre um quarto e um terço de sua população, que a eles pertencem: cultura e línguas próprias, tradições e conivência com um passado comum, sentimento de espoliação desde o Reino de Castela até os tempos atuais. Um anseio  que vem de séculos:

No passado dia 1 de Outubro, a Catalunha votou a favor da independência, enfrentando o governo espanhol que declarou o referendo ilegal. A região é uma das 17 comunidades autónomas de Espanha. Com uma população de 7 milhões e meio de pessoas, a região tem a sua própria língua, história e cultura. Foi na segunda metade do século XVI, quando Fernando II de Aragão se casou com Isabel I de Castela, que a Catalunha passou a fazer parte de uma Espanha unificada. O cerco de Barcelona em 1714 aboliu a soberania da região. A Catalunha foi forçada a adoptar a língua e os costumes de Castela. Quando a Espanha se tornou uma República, em 1931, a região voltou a conquistar a autonomia. Mas perdeu-a novamente com a ditadura franquista. A morte do general Franco restaurou a democracia, e permitiu à Catalunha ter o seu próprio parlamento, força policial e sistema de educação.  A autonomia conquistada não acalmou a ambição dos catalães, descontentes com o governo central. A Catalunha é a região mais rica de Espanha. Representa 20% do PIB nacional. Os cortes orçamentais durante a crise financeira de 2008 e o aumento de impostos contribuíram para agravar o descontentamento e aumentar a força do movimento separatista. Do jornal Público.

Afinal, detém esta região um eixo produtivo  importante da Espanha, com grande peso no PIB,  e se vê – a si mesmo – numa situação de sustentar não só um sistema social que vê como parasitário, como uma herança pesada do Pacto de Moncloa, de 1979, que encerrou o período franquista à custa da restauração monárquica, agravado pela era de austeridade do Governo conservador de Rajoy. Afinal, a Catalunha é progressista e essencialmente republicana:

O sentimento nacionalista cresceu na segunda metade do século XIX e consolidou-se no início do século XX. Nos anos 30 a Catalunha conseguiu autonomia política dentro da República espanhola e os nacionalistas governaram a região. Após um golpe militar em 1936 e três anos da Guerra Civil, o general Franco tomou o poder e resistiu nele ao longo de 40 anos. A Catalunha, como o resto do país, viveu sob a repressão. O poder ficou totalmente centralizado em Madri e o uso oficial do idioma catalão foi proibido. Do El País.

Fico, aliás, com a posição do Podemos, defendendo o diálogo em lugar da violência.

Prefiro, pois,  tratar a questão lateralmente, à luz, seja do liberalismo, que ainda sustenta ideologicamente o mundo ocidental, como da inevitável globalização a que estamos condenados, mercê da redução do planeta à sístole aldeã.

Para o liberalismo, o homem é o lobo do homem, daí a Lei e o Estado. No princípio era a só a  força como prolongamento das leis da natureza.. Então se impôs o império da Lei como primado da civilização. E criou-se o Estado como o suporte de força da Lei, constituindo-se contratualmente como suprema criação ética do Homem. Isso, embora tenha a ver com Hobbes, Adam Smith e Hegel, nada tem a ver com Marx. A esquerda, que deve muito ao salvacionismo de ordem mística, para não dizer  religiosa, sempre preferiu o “bom selvagem”, de J.J. Rousseau, não por acaso baluarte do socialismo moderno. O liberalismo é mais cruel, realista, a cujos processos se dobra, não raro, precisamente porque não é salvacionista. No fundo, aposta na seleção natural como critério da evolução humana. Mas porque não tem ilusões sobre a natureza humana, sabe que tem que que administrar com muito cuidado a dialética da necessidade-liberdade. Se deixar o barco livre de qualquer barreira, ele se perde à deriva da liberdade.

Bobbio, o mais atento observador político do século XX, trata deste assunto e nos fala da tendência do liberalismo em promover divisões internas às manifestações do Poder para que ele não se exalte a si mesmo comprometendo o equilíbrio social e político. Ele comenta e endossa, em seu artigo “Separatismo Liberal”, publicado em La Stampa de 10 de fevereiro de 1994 e incluído no livro Contra os Novos Despotismos, Ed. UNESP, dois outros artigos que mostram a tendência ao separatismo do liberalismo: Tre poderi concentrati in uno”, de Zagrelbelky, publicado em “La Stampa”, em janeiro de 1994; e “O liberalismo como arte da separação”, de Walzer, Michael, de quem retira esta pérola: “ O liberalismo é um universo de ‘muralhas’, cada uma das quais cria uma nova liberdade”.

E diz:

É bom, de todo modo, distinguir as várias formas que assumiu, na longa história do Ocidente, o tema da distinção de poderes. Uma coisa já clássica é a já clássica divisão dos poderes de Estado, Legislativa, Executivo e Judiciário, que fez  Montesquieu dizer que, para conservar a liberdade, é necessário que o poder freie o poder. Outra é, mais do que a separação, o equilíbrio entre as três formas diversas de governo – monárquico, aristocrático, democrático –, do qual nasceu a teoria do governo misto, entendido como garantia, não tanto da liberdade, como da estabilidade do poder. Outra coisa é, ainda, – e é isso que nos interessa aqui – a distinção dos diversos poderes com base nos modos ou maneiras com os quais pode ser exercitado por meio da posse de bens materiais, pelos quais os homens se distinguem em ricos e pobres, por meio da posse de conhecimentos, mesmo que só informação ou código de conduta – a partir da qual nasce o poder daqueles que sabem, sejam estes os sacerdotes nas sociedades religiosas ou os intelectuais nas sociedades secularizadas, sobre aqueles que não sabem, por último, pela posse de meios de coerção que marca, em última instância, o poder político, que é o poder dos poderes, e que se exerce sobre a grande massa de impotentes.

A liberdade, portanto, conquanto seja o elemento central do liberalismo, não é um valor absoluto que se impõe soberanamente sobre a vida de cada homem e da sociedade. Isso é permissivismo. O homem, dizia também Sartre, não só é livre e condenado à liberdade, mas mediado pela contingência. Liberdade, enfim, é um princípio. Onde houver a liberdade, haverá sempre um círculo de controle de seus limites que podem levar ao sacrifício da própria liberdade.

O Estado, por exemplo, é indispensável à fruição da liberdade, mas é, também,  a sede de todos os poderes e, portanto, um lugar potencialmente vocacionado aos abusos de autoridade e excesso dos próprios poderes outorgados. O Estado não é solução nem problema, mas um momento ontológico carregado das contradições do ser social em movimento, que o institui, a partir da fragmentação original . Daí a necessidade dos freios e contrapesos ao seu crescimento desmesurado ou ambições de seus compartimentos. O Estado Nacional Moderno tem perseguido, por isso, a ideia de separar as agências do poder público, sujeitando-as, crescentemente ao controle externo, seja do próprio Estado, seja da Sociedade Civil. Não obstante, mercê das próprias funções cada vez mais relevantes do Estado na Economia e na Sociedade, multiplicando agências e instrumentos de intervenção, o Estado Central, cada vez mais distante da cidadania, vem relevando seu tamanho, sem os indispensável cuidados sobre a quem serve este papel. O Federalismo, por exemplo, concebido como um contrapeso à centralização do Poder no interior dos Estados Nacionais – e que seria um poderoso instrumento para atenuar os conflitos regionais subsistentes em várias partes do mundo – vem perdendo força e se transformando em mera retórica. Um autor, Alvaro Vasconcelos (cit), tem, a propósito, insistido em mostrar que o Federalismo poderia ser o caminho para o diálogo entre o Governo de Espanha e catalães.

Com igual razão, o respeito às Nações que se incorporam a níveis superiores de articulação institucional, como Organização das Nações Unidas ou União Europeia, ante-salas políticas de uma globalização em curso desde a fundação dos grandes Impérios Coloniais deve ser feito com muito cuidado. A Política,  enfim, sempre vai atrás das conquistas econômicas tratando de lhe dar alguma configuração institucional e ideológica que, muitas vezes,  consagram injustiças e aberrações. Quantas culturas pereceram sob os cascos dos cavalos de Alexandre, O Grande, em nome do helenismo,  para não falar do genocídio dos índios americanos sob as moendas dos carroções que invadiam suas terras ao amparo da cavalaria americana e em nome do progresso? Ó Cartago! Ó Tenochtlitán! Não há, na orgiem, sequer, uma ideia platônica de um Império, nem mesmo de um Estado Nacional, antes de sua constituição, todas elas imantadas por uma ficção mítica da sua necessidade, tal como nos ensina Y. Harari em “Sapiens”. O risco desta empreitada é o de destruir um sentimento de “pertencimento” sem ser capaz de colocar outro mais poderoso em seu lugar no alargamento dos espaços de dominação, com o inevitável revide do revival tribalista, “falso remédio para um veneno  verdadeiro”. Vide Estado Islâmico. Vimos isso na formação dos Estados Nacionais na Europa e no Novo Mundo e assistimos, perplexos, às consequências do princípio da intangibilidade das fronteiras coloniais, que preservou o desenho das antigas colônias por mero interesse das respectivas metrópoles, na descolonização africana e meio oriente: Estados artificiais, hoje mergulhados na anarquia, criados pelo dedo dos ingleses e franceses vitoriosos na I Guerra Mundial.

In his book Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, Benedict Anderson, of Cornell University, demonstrates that the map enabled colonialists to think about their holdings in terms of a “totalizing classificatory grid. . . . It was bounded, determinate, and therefore—in principle—countable.” To the colonialist, country maps were the equivalent of an accountant’s ledger books. Maps, Anderson explains, “shaped the grammar” that would make possible such questionable concepts as Iraq, Indonesia, Sierra Leone, and Nigeria. The state, recall, is a purely Western notion, one that until the twentieth century applied to countries covering only three percent of the earth’s land area. Robert D. Kaplan em The Coming Anarchy.

E, da mesma forma, tal como foram criados os Estados Nacionais, agora vivenciamos nosso destino inelutável como “Aldeia Global”, sob os auspícios não só dos imperativos civilizacionais ou opções ocidentais, como dos apetites da  potência hegemônica, desde o século XX, sobre os mercados mundiais, sob a alegação da consigna “TINA – There is no Alternative”: Os Estados Unidos. O problema é que, neste processo a globalização atropela realidades, não só culturais, como de opções políticas, nem sempre conciliáveis, gerando conflito e potenciando a paz mundial. Foi-se o tempo da glamurização dos mercados globais que encantaram Tony Blair e Fernando Henrique Cardoso sob a batuta de Bill Clinton. A realidade, hoje, é o desencanto cujos nomes são conhecidos como BREXIT, Le Pen e até Donald Trump. Regis Debray, filósofo francês que se notabilizou na América Latina pela sua presença ao lado do foquismo insurrecional comandado por Che Guevara, década de 60, sintetiza o desafio para a própria Europa, que construiu a União Europeia como pérola da globalização;

O que tem de europeia a nossa Europa coberta por um manto azul de seupermarkets, o sucessor de branco do manto das igrejas, tendo, aqui e ali, como suplemento para a alma, museus em forma de bunker onde se pode ir , bocejando, para cumpirir as suas obrigações culturais? Havia mais Europa na era dos mosteiros… Régis Debray, em “Num tecido azul com doze estrelas douradas”.

A mesma lógica que leva à centralização do Poder em Estados Nacionais, nos quais necessidade e liberdade se realimentam,num processo nem sempre suficiente para amalgamar um novo estado de espírito dito nacional, como atestam vários movimentos de autonomia no mundo inteiro, no qual se insere o caso da Catalunha, se reedita na criação de instâncias supranacionais de Poder. E se a artilharia foi a arma dos Reis para dobrar a velha cavalaria aristocrática e que teve seu epílogo na Guerra dos Trinta Anos na Europa, hoje, o controle dos céus é a arma de afirmação da nação hegemônica e, como sempre, exige uma cola mítica que desça dos ares à terra de forma a docilizar os espíritos renitentes, o que exige não só uma retórica civilizacional como atitudes concretas de legitimação. Em alguns casos, as lacunas da consagração nacional acabam criando condições para a contestação da escala maior da dominação, potenciando a resistência a ambos processos. Ou seja, a própria incapacidade de levar a cabo com êxito a formação de Estados Nacional coloca em risco cada vez maior a própria globalização, daí amplos setores da esquerda europeia defenderem o retorno ao nacionalismo como tática de luta mais apropriada à retomada da iniciativa popular.

Em outros, é a lógica  mesma da globalização que vai colocando em risco o próprio Estado Nacional ao reabrir  feridas que se pensava resolvidas. Com isso, corremos o risco de ingressar, sim, mais do que no mundo novo do socialismo, no que R.Kaplan, especialista em cenários internacionais, denomina como Era de Anarquia. Contudo, como sentenciava Machiavel: Sará mia la colpa si cosi é…?

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Paulo Timm é economista, pós-graduado CEPAL/ESCOLATINA – Prof. aposentado da UnB . Fundador do PDT.


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