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27 de setembro de 2017
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19:02

La Merkel na berlinda. Mais do mesmo.

Por
Sul 21
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CC / ARMIN KÜBELBECK

Paulo Timm

Penso que não enfrentar oposição nenhuma, mais que uma vantagem, pode ser uma desvantagem para o capitalismo. Os sistemas sociais só têm a ganhar com a heterogeneidade interna, o pluralismo de princípios que os blinda da dedicação a uma única finalidade, criando outras metas que também devem ser cumpridas para que o sistema seja sustentável.

O capitalismo, tal como o conhecemos, se beneficiou muito com a ascensão de movimentos opostos ao domínio do lucro e do mercado. O socialismo e o sindicalismo impuseram um freio na transformação de tudo em mercadoria, impedindo o capitalismo de destruir seus alicerces não capitalistas – a confiança, a boa-fé, o altruísmo, a solidariedade no seio das famílias e das comunidades, e assim por diante.

W. Streeck, em entrevista à revista piauí.

A Alemanha foi às urnas nesta semana, dia 24 setembro, no bojo de uma União Europeia enfraquecida pela saída do Reino Unido, doente pela perda de seu encanto civilizatório, tumultuada pela onda de refugiados que não para de chegar. Angela Merkel, Chefe do União Democrata Cristã – UDC e no comando do centro conservador do país desde 2005, vai tentar mais um mandato, quase tão longo quanto os de Konrad Adenauer, que enfrentou a reconstrução do país no pós-guerra, sociais do Partido e o de Hermut Kohl (1982/98), responsável pela reunificação no país nos anos 90. Ela administrou bem as mudanças promovidas pelo chanceler social-democrata Gerhardt Schroeder, a quem louvou pela ousadia, aliás dignas do mais empedernido conservador, na implantação da “Agenda 2010”, ao tempo em que surpreendeu ao aceitar a entrada de um milhão de refugiados na Alemanha. Isso lhe custou a ira da ultra direita enfurecida, mas, por outro lado, soterrou o velho Partido Social Democrata, o SDP, cuja origem se confunde com a ascensão do movimento operário no final do século XIX, tendo Karl Marx tido nele importante papel, com suas críticas do Programa do Partido aprovado em Gotha. Hoje o SPD está em pedaços, depois de perder sua velha base sindical mais combativa e sofrer sucessivas derrotas, nos planos nacional e regionais. Ainda assim, é o segundo maior Partido na Alemanha.

A confusão ideológica do SPD vem de longe, afastando-o crescentemente do horizonte socialista.

Em 1959 ainda lutava pela instauração de uma “nova ordem” admitindo que a propriedade coletiva é uma forma legítima de controle público a que nenhuma Estado moderno pode renunciar”. Lentamente, porém, foi se distanciando das suas bases sociais e ideológicas, vindo a aderir abertamente ao neoliberalismo na década da glamurização globalista, 1990. Apesar disso, ainda mantém em seu programa a proclamação de uma economia social de mercado através de uma presença ativa do Estado na criação de empregos contra a precarização do trabalho, na regulação dos mercados financeiros com taxação dos rendimentos mais altos e no alargamento dos direitos dos trabalhadores nos comitês de empresa. Alguns de seus membros ainda se batem por esta agenda social, mas o grosso do SPD já as atropelou por completo.

Rigorosamente, La Merkel não tem adversários poderosos capazes de lhe apear do cargo. Ela se guia pelo ideário liberal da UDC: economia de livre mercado, contra a taxação da riqueza e rigorosa austeridade fiscal. As duas forças mais ativas que lhe são mesmo antagônicas, a ultra-direita e o Die Link, uma organização de esquerda que se formou em 2007, no ocaso do SPD, farão muito barulho, mas não detém a capacidade de mudar o cenário dominado pelo centro-direita da Merkel. Resta, apenas, saber se, vitoriosa, retomará a “grande aliança” governativa com os sociais-democratas, com os quais se assemelha cada vez mais, ou com outras correntes liberais. Os resultados pouco se refletirão nas diretrizes de governo. A Alemanha é o cérebro do neoliberalismo dominante na Europa, segundo o “Princípio América” e, mesmo sem força militar, detém as rédeas de todo o continente, em cujo núcleo estão os 27 países da União Europeia, tudo, na verdade, concertado com a americanização da vida cotidiana. Diz-se, inclusive, que alguns países, como Dinamarca, são mais americanos do que muitas unidades da federação norte-americana. O capitalismo brutal, mas devidamente estetizado e autojustificado, enfim, com a globalização, se misturou à atmosfera do mundo inteiro  e conforma, cada vez mais um estilo de vida e cultura. As alternativas, como Coreia do Norte ou Estado Islâmico, ambas contestadoras, embora por razões diferentes, à esta ordem supostamente competitiva, soam como irracionais e esdrúxulas. Uma cultura, aliás, cada vez mais marcada pelos valores protestantes da responsabilidade pessoal perante o destino do que pelos humanísticos do Renascimento.  Curiosamente, tanto Coréia do Norte como Daesh emergem como revival dos dois fantasmas que moldaram a Sociedade do Bem Estar europeu à sombra do medo: Stalin e Hitler. Forças de contenção… A questão da Alemanha não é, pois, tanto, eleitoral, como foi na França, nem comporta a novidade Macron que lá se consagrou com talento e originalidade, mas de natureza geopolítica e sócio-econômica. Continuará a União Europeia a moldar-se pelo modelo alemão? Persistirá este modelo na sua rota de precarização do trabalho e concentração da riqueza?

A resposta à primeira indagação enfurecerá os franceses, mas aponta para a manutenção da Alemanha no controle a União Europeia, graças, aliás, ao déficit de democracia que reina no seu interior, com sede em Bruxelas. Regis Debray, desiludido,  escreve sobre isso em seu último livro, “Num tecido azul com doze estrelas douradas”, sintetizado com artigo de igual título no Le Monde português de agosto de 2017:

“Havia mais de Europa na era dos mosteiros. (…) Donald Trusk, presidente do Conselho Europeu, que se dirige em globish aos seus diversos interlocutores, parece ser bem menos europeu do que o imperador Carlos V, que falava espanhol a Deus, italiano às mulheres, francês aos homens e alemão a seu cavalo”.

O sistema de gestão deste “artefato” supranacional, sobreposto a uma miríade de culturas milenares, com níveis extremamente diferentes de desenvolvimento, não passa pelo voto e pelo exercício da democracia. É, sim, uma máquina tecnocrática dominada pela visão escatológica da supremacia da eficiência, ou seja, do lucro.  Há, por isso, um amplo movimento de setores da esquerda europeia, com os gregos à frente, no sentido de submeter a União Européia à um verdadeiro escrutínio constitucional derivado do voto, capaz de quebrar a hegemonia produtivista,  mas isso dificilmente passará. Mesmo que fosse aprovado, este processo teria que reacender a esperança dos cidadãos para um comparecimento maciço às urnas, na defesa de estratagemas alternativos, tal como ocorreu durante o século XX.  Isso esbarra na apatia da população ao revigoramento democrático. Talvez este seja o maior resultado da “cultura contemporânea”. Todos sabem que as coisas não vão bem, mas não se mobilizam para mudá-la. Os focos de luta anticapitalista, ou são dispersos, como os Indignados e outros, ou residem na resistência de setores corporativos devidamente integrados no sistema na defesa de direitos ameaçados. É muito pouco para um sociedade em que 99% são dominados por apenas 1% da população. Uma voz irada de um filósofo marxista esloveno escabela-se gritando por todos os cantos e recantos europeus por mais radicalidade na indignação. Prega no vazio das almas… E quanto ao dito “modelo alemão”, que se insinua como única alternativa ao desenvolvimento?

Ora, o modelo alemão, é na verdade uma brutal “racionalização” do neoliberalismo, que se pretende impor ao conjunto da Europa – e do mundo.

Um sociólogo radical alemão, W.Streeck, Diretor do Instituto Max Plank, tem se notalizado com suas análises precisas e criteriosas sobre o suposto “milagre alemão”. Demonstra que ele não é senão uma nova face, mais desumana ainda, do velho capitalismo, condenado a morrer de overdose por excesso, não de fracassos, mas de êxitos. Suas teses estão publicadas em várias publicações e entrevistas, notadamente no livro “Como Acabará o Capitalismo? Ensaios sobre um Sistema Fracassado resenhado por Ricardo Cavalcanti Schiel -, Streeck não se limita à desregulação perda dos direitos sociais no modelo alemão. Ele o associa ao que aponta como cinco grandes doenças do capitalismo contemporâneo:

“Ao lado do declínio do crescimento econômico, do aumento da desigualdade e da transferência do setor público para a propriedade privada, a corrupção é a quarta doença do capitalismo contemporâneo. (E…) chegamos, finalmente, à quinta doença, a anarquia global.”

Detenho-me, a propósito, na questão da corrupção (na qual nem a poderosa Volkswagens se eximiu, ao ser flagrada na fraude dos filtros dos escapamentos),  tão em evidência no Brasil nos últimos anos, para não só chamar a atenção para sua generalização, mas para destacar sua correlação com um sistema de estímulos aos “instintos animais” de produtores e consumidores que acabam soterrando os proclamados valores que erigiram a civilização. A mera ideia de uma mão invisível que regularia a economia não é senão um resquício do naturalismo que regularia os movimentos do universo e da ação humana. Ora essa, o advento do homem não é senão uma ruptura com as leis naturais, começando pela criação de valores que acabam operando como suportes da coesão social: As virtudes, começando pelo senso de cooperação e pelo conceito de justiça.À falta do sentimento de justiça, entregamo-nos à força das circunstâncias, nas quais se sobressaem os mais fortes.

Um autor descreve, ainda que superficialmente, o elevado nível de corrupção no na Europa:

“O panorama desse malavita é impressionante. Um afresco sobre o tema poderia começar com Helmut Kohl, governante da Alemanha por dezesseis anos, que acumulou um caixa dois de campanha de cerca de 2 milhões de marcos alemães [cerca de 3 milhões de reais]. Quando o caso foi descoberto, ele não quis revelar os nomes dos doadores, com medo de que viessem à luz os favores que eles receberam em troca. Jacques Chirac, presidente da República francesa durante doze anos, foi condenado por desvio de dinheiro público, abuso do cargo e conflito de interesses, depois que perdeu sua imunidade. Nenhum deles sofreu punição. Eram os políticos mais poderosos da Europa em sua época. Uma olhada no que ocorreu desde então é suficiente para desfazer qualquer ilusão de que se trata de casos isolados.

Na Alemanha, o governo de Gerhard Schröder garantiu um empréstimo de 1 bilhão de euros à companhia russa Gazprom para a construção de um oleoduto, poucas semanas antes de o chanceler deixar o cargo e entrar na folha de pagamento da empresa com um salário superior ao que recebia para governar o país. Desde que ele saiu, Angela Merkel viu dois sucessivos presidentes da República serem obrigados a renunciar: Horst Köhler, antigo chefe do Fundo Monetário Internacional, por haver explicado que o contingente militar alemão no Afeganistão estava protegendo interesses comerciais do país; e Christian Wulff, antigo chefe democrata-cristão na Baixa Saxônia, em razão de um empréstimo duvidoso para sua casa feito por um empresário amigo. Dois importantes ministros, um da Defesa, a outra da Educação, tiveram que deixar o cargo ao terem os títulos de doutor cassados por furto intelectual. Quando esta última, Annette Schavan, amiga íntima de Merkel (que manifestou plena confiança nela), ainda se agarrava ao cargo, o tabloide Bild comentou que ter uma ministra da Educação que frauda pesquisas era como ter um ministro das Finanças com uma conta bancária secreta na Suíça.

Dito e feito. Na França, descobriu-se que o ministro socialista do Orçamento, o cirurgião plástico Jérôme Cahuzac, tinha de 600 mil a 15 milhões de euros em depósitos secretos na Suíça e em Cingapura. Nicolas Sarkozy, enquanto isso, é acusado por testemunhas de ter recebido cerca de 50 milhões de euros do líbio Muammar Kadafi para a campanha eleitoral que o conduziu à Presidência. Christine Lagarde, sua ministra das Finanças, agora na chefia do FMI, está sendo investigada por seu papel na concessão de 420 milhões de euros em “compensação” para Bernard Tapie, conhecido trapaceiro com antecedentes penais e, nos últimos tempos, amigo de Sarkozy.[1] A contiguidade descuidada com o crime é bipartidária. O socialista François Hollande, atual presidente da República, ia na garupa de uma moto para seus encontros com a amante no apartamento de uma prostituta ligada a um gângster corso morto num tiroteio na ilha.

Na Grã-Bretanha, mais ou menos na mesma época, o ex-primeiro ministro Tony Blair dava conselhos a Rebekah Brooks, ex-braço direito do magnata da mídia Rupert Murdoch, que corria o risco de ir para a cadeia por cinco acusações de conspiração criminosa relacionadas à época em que dirigia o extinto tabloide News of the World. “Tenha à mão comprimidos para dormir. Isto vai passar. Seja forte”, disse Blair a Rebekah, recomendando-lhe ainda que abrisse uma investigação “independente” sobre o caso como ele mesmo tinha feito para isentar seu governo de qualquer participação na morte de David Kelly, o cientista britânico e inspetor da ONU no Iraque que questionara as razões alegadas para a invasão do país árabe, uma invasão que renderia a Blair – para a sua Faith Foundation, é claro – uma profusão de gorjetas e negócios no mundo inteiro, com destaque para doações de uma empresa petrolífera sulcoreana, presidida por um criminoso condenado com interesses no Iraque, e da dinastia feudal do Kuwait.

Na Espanha, o atual primeiro-ministro, Mariano Rajoy, à frente de um governo de direita, foi flagrado recebendo propinas em obras públicas e outros negócios, no valor total de 250 mil euros ao longo de uma década, que lhe foram repassados por Luis Bárcenas. Tesoureiro do Partido Popular durante vinte anos, Bárcenas está preso por amealhar 48 milhões de euros em contas não declaradas na Suíça. Fotocópias dos livros de contabilidade com registros à mão de suas transferências para Rajoy e outras figuras do partido – como Rodrigo Rato, outro ex-diretor do FMI – circularam na imprensa espanhola. Quando estourou o escândalo, Rajoy passou uma mensagem de texto para Bárcenas com palavras praticamente idênticas às de Blair para Rebekah Brooks: “Luis, eu compreendo. Seja forte. Ligo amanhã. Um abraço.” Oitenta e cinco por cento da opinião pública espanhola acham que Rajoy está mentindo, mas ele continua firme no Palácio da Moncloa.

Na Grécia, o social-democrata Akis Tsochatzopoulos, sucessivamente ministro do Interior, da Defesa e do Desenvolvimento, teve menos sorte: foi condenado a vinte anos de prisão por uma formidável carreira de extorsões e lavagem de dinheiro. Do outro lado do mar Egeu, o premiê turco Tayyip Erdogan – que a mídia e o establishment intelectual da Europa costumavam louvar como o maior estadista democrata da Turquia, cuja conduta praticamente conquistou para o país a filiação honorária à União Europeia – mostrou que é digno de figurar nas fileiras dos dirigentes da UE por outras razões: numa conversa gravada, instruía o filho sobre onde esconder 10 milhões em espécie; noutra, elevava o preço de um suborno num contrato de construção. Três membros do seu gabinete foram derrubados por revelações parecidas, antes que Erdogan fizesse um expurgo na polícia e no Judiciário, para impedir que o assunto fosse adiante.

Enquanto ele fazia isso, a Comissão Europeia divulgou seu primeiro relatório oficial sobre corrupção na UE, cujas dimensões foram descritas como “assombrosas” pelo comissário que redigiu o documento: numa estimativa por baixo, a corrupção custa o equivalente a todo o orçamento do bloco, cerca de 120 bilhões de euros por ano. Prudentemente, o relatório cobria apenas paísesmembros. A Comissão Europeia, o órgão executivo da UE, com sede em Bruxelas, foi excluída.

A poluição do poder pelo dinheiro e pela fraude, lugar-comum numa União que se apresenta ao mundo como guardiã da moralidade, decorre do esvaziamento da democracia de substância e de participação. Perry Anderson – Corrupção Política: Triste fenômeno universal, Tribuna Livre da Luta de Classes – Ed.95 | Ago2014

Mas vamos aos indicadores do “Milagre Alemão”. Afinal de contas, nem tudo no capitalismo contemporâneo é corrupção, mas sobretudo déficit de democracia, que não é, senão, um sinônimo de inclusão como cidadão, consumidor e artesão, vejamos as implicações sociais do Milagre Alemão.

Várias publicações têm se esmerado em evidenciar os resultados das reformas da Agenda 2010, comandada por Schroeder no final do século XX. Uma última merece atenção: “O inferno do milagre alemão” por Oliver Cyran, publicado no Le Monde, Portugal – setembro 2017.

Vejamos, introduzindo o tema, com uma digressão sobre a ligação entre concorrência, neoliberalismo e mudanças nos Códigos de Trabalho.

Florestan Fernandes, patrono da Sociologia brasileira, preferia a expressão “ordem social competitiva”  à clássica fórmula marxista do Modo de Produção Capitalista. Tinha razão, a acirrada competição excitada pela valorização dos instintos domina o “ar que respiramos”.

Quando ela atinge o campo da disputa de mercados, vira guerra suja. E se essa competição coloca nações em jogo, vira destruição e caos. Ora, foi isso que aconteceu nas I e II Guerras Mundiais, que deixaram um rastro de 100 milhões de mortos: disputa de espaços vitais para a reprodução em escala cada vez maior dos interesses capitalistas. Depois da catástrofe, serenados os espíritos belicosos após a explosão em Hiroshima, a grande nação do Norte, distante do teatro da guerra, saiu ilesa e preparada para um longo período de progresso sob o regime da Pax Americana ancorada nos Acordos de Bretton Woods, de 1944: um sistema financeiro garantido pelo FMI, com base no dólar vinculado ao ouro e um sistema de oferta de crédito à formação de capital, sob a égide do BIRD. Nem a Guerra Fria, suscitada pelo poder atômico do bloco soviético, lhe abalou as estruturas de concorrência e dominação sobre o mundo dito ocidental. A partir, porém dos anos 1970, o mundo já estava reconstruído e potentes economias da Europa e até mesmo o Japão passaram a disputar espaços econômicos com os produtos americanos invadindo, sobretudo, o mercado americano, o único com potencialidade para garantir a acumulação da valiosa divisa lastreada em ouro. O resultado foi um desarranjo no sistema que levaria à ruptura unilateral dos Estados Unidos com o padrão ouro, levada a efeito pelo Presidente Nixon no início de 1971, com o consequente abandono do modelo de Bretton Woods.

Isso, entretanto, nem quebrou a hegemonia do dólar nos mercados mundiais, tendo em vista a poderosa hegemonia americana, nem arrefeceu a concorrência internacional. Pelo contrário, agudizou-se cada vez mais, vindo a tornar-se crítica depois da virada chinesa na década seguinte, transformando-a na fábrica do mundo e impondo um aperto de cada economia nacional sobre os direitos sociais distribuídos no período anterior, de forma a elevar a capacidade competitiva de suas respectivas economias.

Foi neste ambiente que emergiram as reações conservadores de Margareth Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos Estados Unidos na década de 1980 e que culminariam num conjunto de regras de fortalecimento empresarial no ano de 1989 registradas no Consenso de Washington. O mundo mergulharia num novo marco da globalização, marcado pela presença dominante do sistema financeiro e pela repressão econômica ao mundo do trabalho. Já, então, em nome da concorrência, não mais havia necessidade dos conservadores para a implementação da austeridade fiscal. Entra em cena a “Terceira Via” preconizada por Toni Blair e Bill Clinton, com endosso de grande parte da social democracia mundial, à qual não se furtaram FHC , no Brasil, e Menem, na Argentina, perfeitamente sintonizada com os princípios do neoliberalismo: privatização de agências e empresas públicas, desregulamentação dos mercados, principalmente financeiro, de forma a dar mobilidade internacional online à especulação no Senhor Mercado, e revisão nos Códigos de Trabalho, voltando-os ao período ex-ante ao boom progressista do pós-guerra.

Na Alemanha isso começou no dia 16 de agosto de 2002 , quando um certo H. Hartz, assessor do Governo SPD Schroeder, oriundo da Volkswagen, onde fora condenado por ter subornado dirigentes sindicais para evitar reivindicações trabalhistas, entregou um relatório propondo criar 2 milhões de empregos em pouco tempo. “Um grande dia para os desempregados” , exultou o Chanceler: “com 344 páginas, o relatório da comissão inclui 13 “módulos” de inovações redigido numa linguagem empresarial à base de engleutsch (mistura de alemão e inglês) onde fervilham expressões como controlling, change management, bridge system para ativos idosos, novo trabalho gratuito e voluntário. O Jobcenter (Agência de Emprego) é ali descrito como um serviço melhorado aos clientes.”

Este modelo, que não é senão um roteiro à precarização do trabalho, entraria em vigor em 2005, sendo o núcleo do Programa “Agenda 2010” que pretendia fortalecer as empresas alemãs mediante flexibilização do sistema de contratações, com a eliminação gradual dos subsídios aos necessitados, ora transformados em trabalhadores pobres, tudo revestido de uma forte retórica moralista de responsabilização civil para um Estado Mínimo. Ou como preferia o próprio Schroeder com esta pérola, que soa para nós como um palavrão: fo(e)rdern und fordern, ou seja, encorajar e exigir.

“Pela sua filosofia, o germe deste regime inquisitorial (que transforma os Jobcenters em agências de perquirição da vida privada de cada beneficiário) no manifesto assinado em junho de 1999 por Schroeder e seu homólogo Tony Blair: os dois profetas da “social-democracia moderna” proclamavam a necessidade de “transformar a rede de segurança dos benefícios sociais num trampolim para a responsabilidade individual” (Olivier Cyran – Le Monde, cit).

O modelo ganhou rápido curso no resto da Europa, dirigindo-se, sobretudo aos países mais resistentes como os escandinavos, França e ibéricos. Paradoxalmente, a Itália de Berlusconi, mais preocupado com os encantos do poder na convalidação de uma vaidade pessoal indecorosa, ficaria à margem deste processo.

O resultado destas medidas, conhecidas pelo nome de seu inspirador, Hartz IV, foram rápidas. Criaram-se na Alemanha mais de 400 Jobcenters, encarregados de substituir autoritariamente  o estigmatizado desemprego por empregos precários de baixa remuneração.

Tendo entrado em vigor o regime que saiu desta anti-língua vem entrelaçar-se no outro “pacote” da Agenda 2010 que orquestra a desregulamentação do mercado de trabalho. Colocar os desempregados no funil salarial impunha forjar um grande conjunto  de ferramentas destinadas aos empregadores: não taxação dos baixos salários, lançamentos de mini-empregos a 400 euros, e depois a 450 euros por mês, desplafonamento do recurso aos trabalho temporário, subvenção às agencias de trabalho temporário que privilegiem desempregados de longa duração, etc.

No final de 2016, essa nova rede de “clientes” do sistema Hartz, coercivamente administrado de forma a obrigar o desempregado a aceitar a oferta indicada, nem sempre compatível com as particularidades do beneficiário, com um um subsídio que pode chegar a 409 euros por mês, abrangia 6 milhões de pessoas, num total populacional de 82,67 milhões, dos quais cerca de 60 milhões em idade ativa. Dos 6 milhões, conhecidos como “parasitas Hartz IV” 2,6 milhões são desempregados oficiais, 1,7 são desempregados estimados e 1,6 milhões são filhos de beneficiários. Numa sociedade protestante são todos eles estigmatizados como fardo social mas evidenciados como o produto mais sofisticado da nova engenharia social do capitalismo alemão.

A crise de 2008 trouxe, porém, à tona a inutilidade deste expediente. Todas as economias europeias vieram abaixo e agora rastejam em baixas taxas de crescimento. Nem por isso, porém, arrefeceu a crença de sua necessidade, ora expressa tanto pelo novo presidente francês, E. Macron, ainda encantado pela ideia, como pelo Governo Temer, no Brasil. E, conquanto não se vislumbre uma alternativa ao modelo capitalista vigente, concentrador e excludente, com reflexos negativos no processo democrático, sobrevivem as resistências localizadas, com raízes organizativas no passado sindical. Não têm sido suficientes para refrear a agonia ou influenciar os processos eleitorais em curso. Pelo contrário, várias áreas da Europa que votavam tradicionalmente na esquerda, hoje se voltam aos apelos populistas de ultradireita. No caso da Alemanha, isso também ocorre, mas, mercê da habilidade de Angela Merkel, talvez não sejamos, ainda, assaltados pelo retorno da ultradireita. Mas se ela consegue afastar o fantasma de Hitler, isso pouco significa para o desenvolvimento da democracia no continente, como sinônimo de inclusão, pois os mecanismo de exclusão parecem de tal forma enraizados que não admitem revisão.

Nunca, enfim, foi tão necessária uma revolução no mundo, mas nunca, talvez, ela esteja tão distante.

***

Paulo Timm é economista, pós-graduado CEPAL/ESCOLATINA – Prof. aposentado da UnB . Fundador do PDT.


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