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27 de maio de 2016
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10:05

Marx e Ortega

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Marx e Ortega
Marx e Ortega

karl-marxPor Paulo Muzell

São dois pensadores diametralmente opostos, nada tem em comum, são como água e óleo, que não se misturam. Os une uma única curiosa coincidência: Ortega nasceu no ano da morte de Marx, 1883.

O primeiro, um alemão cartesiano, agregou à dialética hegeliana a visão materialista da história. Colocou de cabeça pra baixo o pensamento idealista afirmando que a base material de uma sociedade é o que determina a sua consciência. A estrutura econômica – por ele chamada de modo de produção – molda as superestruturas: a moral, a religião, a cultura, a ideologia da sociedade. Karl Marx é seco, direto no estilo, suas complexas análises são objetivamente desenvolvidas sem qualquer preocupação didática, de facilitar a compreensão ou com a elegância ou o brilho. Quem leu ou tentou ler o Capital, especialmente naquelas velhas versões em espanhol, sentiu isso: um verdadeiro soco no queixo. Para divulgar sua obra contou com a preciosa colaboração de Friedrich Engels autor em parceria do clássico “A ideologia alemã”. Na vasta obra de Engels temos uma preciosidade: “A origem da família, da propriedade e do Estado”. Esta única obra, assim como “A teoria da Classe Ociosa” de Thorstein Veblen, bastaria para colocar esses dois autores na categoria dos grandes pensadores. Mas Engels foi além, teve o mérito de popularizar a hermética obra de seu parceiro em obras como “Do socialismo utópico ao científico” e “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, dentre muitas outras. Agregando à filosofia e à história um novo método e realizando uma profunda análise crítica da economia política clássica, Marx foi um inovador e um revolucionário.

O segundo pensador, Ortega, é um conservador, um intransigente defensor dos direitos da minoria. Ignora a luta de classes, divide os homens em dois grupos: uma maioria composta por homens “sem cara”, para os quais a vida é um “estar aí”. Vivem usufruindo “facilidades” existentes graças ao trabalho de uma minoria excelente que promove o avanço. A massa é um enorme contingente de “crianças mimadas”. O seu oposto, o homem excelso, enfrenta a “bela aventura” do viver, é um romancista de “si mesmo”, que molda seu destino e o do mundo. Para Ortega há, numa mesma classe social massa e minoria excelente. Ele alerta que o fenômeno da aglomeração provocou uma crescente ascensão do homem massa. A consequência é o aumento da brutalidade e da estupidez. O homem massa sabe muito de uma coisa e ignora todas as demais: a autoconfiança o “autoriza” a atuar – desastradamente – em esferas e áreas que desconhece. O resultado é a fragmentação, a perda de uma perspectiva global, o retorno à barbárie. Ortega é dono de uma linguagem fluente, ritmada, melódica: um verdadeiro literato escrevendo filosofia.

Marx, sem nenhuma dúvida, é, de longe, o mais importante dos dois. Sua obra inspirou o surgimento de escolas de pensamento em todos continentes: Europa, América, Ásia e África. Decorridos mais de cento e trinta anos de sua morte tem, ainda, centenas de seguidores e, também, de críticos. Influenciou movimentos revolucionários que mudaram o curso da história. Desnudou a natureza e o caráter do capitalismo, um sistema que gera acumulação de renda e de riqueza de muito poucos em detrimento da exploração de muitos. A acumulação de capital nas mãos do proprietário dos meios de produção ocorre à custa da alienação do trabalhador: parte do valor que ele gera com o seu trabalho é apropriado pelo empresário: é a extração da mais valia. Marx acertou e errou. Diagnosticou o caráter predatório do capitalismo, a desastrosa concentração da renda e da riqueza que se acentuaria. Previu os desequilíbrios do sistema: as crises de superprodução, a transição do capitalismo industrial para o financeiro, a formação das “bolhas especulativas”. Só exagerou no otimismo ao acreditar na superação do capitalismo e na passagem para uma sociedade melhor, sem classes e sem a presença do Estado. As experiências – passadas e presente – de regimes não capitalistas não deram certo. Por outro lado, como Thomas Piketty e de Noam Chomski dentre outros tem comprovado à exaustão, a renda e a riqueza concentram-se de forma brutal nos países de capitalismo avançado – a maior economia do mundo, a dos Estados Unidos é um exemplo típico – gerando uma indesejada concentração de poder político que ameaça precária e insuficiente democracia burguesa: caminhamos a passos largos para uma plutocracia.

O grande mérito de Ortega, além do prazer que sua leitura proporciona está no caráter profético da sua “A rebelião das massas”. Na sua vasta obra não pode ser esquecida, também, a admirável “Meditação da Técnica”. Quase noventa anos atrás Ortega previu a crescente e perigosa presença de um homem sem raízes, vulgar, que afirma e reafirma com orgulho seu direito à vulgaridade; que age sem prudência, muitas vezes com violência. Tem um desejo de agir, não sabe como: falta-lhe organicidade e método. Aqui no Brasil, especialmente, ele é influenciado por uma criminosa mídia oligopolizada, sem nenhum compromisso com a verdade, que não informa, apenas fabrica versões que atendem os interesses da oligarquia. Assim, quando a insatisfação popular cresce – com as organizações e os movimentos populares e sindicais em baixa – é o momento propício para inflexionar a política à direita. A crise política e econômica atual – desemprego crescente, elevação dos preços, aumento real ou propalado da corrupção, tornou possível o recente, fulminante e vergonhoso ataque à nossa frágil democracia. Episódios de repressão e de violência, de natureza claramente fascista pipocaram e pipocam no país aqui e ali. A sua origem, me parece, está lá nas manifestações de 2013.

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Paulo Muzell é economista.


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