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22 de maio de 2016
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10:01

Mia Couto, sem pressa

Por
Sul 21
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Mia Couto, sem pressa
Mia Couto, sem pressa
Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Por Nubia Silveira

Nos primeiros meses deste ano, entre as minhas leituras, estiveram quatro obras do moçambicano Mia Couto: Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, Terra Sonâmbula, Estórias Abensonhadas e O outro pé da sereia. Aprendi que é preciso lê-lo aos poucos, com calma, sorvendo cada um de seus pensamentos, de suas frases, dos seus personagens. Não é autor para ler de supetão, como quem está com muita fome e para matá-la não tem tempo de saborear a comida. Foi o que fiz: li, reli, pensei. Os quatro livros me cativaram, mas foi Terra Sonâmbula o que realmente mexeu com os meus sentidos.

Nesses quatro títulos estão presentes as lembranças da guerra e a magia que cria personagens impensados e momentos além da imaginação. A história vai nos conquistando, entrando pelos nossos poros, tomando conta de nós. Passamos a viver a miséria a que os personagens estão expostos, como tantos brasileiros, a esperar que encontrem um futuro melhor, o que não parece ser a preocupação do autor. Ele fica entre a verdadeira realidade e aquela imaginada, com surpresas para os leitores. Para mim, a caminhada de Muidinga, que busca por seus pais, e Tuahir, que avança com ele por caminhos desconhecidos, em Terra Sonâmbula, é comovedora. O menino e o velho enfrentam os medos, lendo as estórias contidas nos cadernos que encontraram próximo a um ônibus destruído. Mia se move lentamente entre as angústias e expectativas do autor das estórias e as de Muidinga e Tuahir.

Também me tocou a volta de Marianinho, um estudante universitário, à sua terra natal, Luar-do-Chão, uma ilha que não visitava há muito tempo. Retornou para rever o avô que estava morrendo. Reencontrou a avó, os tios, o pai. Vai descobrindo o passado que desconhecia. Mia dá aos personagens de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra nomes que eu jamais pensaria. O avô é Dito Mariano, o tio, Abstinêncio, a tia, Admirança, e o pai, Fulano Malta. Há muitos outros. O escritor, nascido na cidade de Beira, em Moçambique, é criativo como poucos.

Acho que um dos grandes temperos da escrita de Mia são os substantivos e os adjetivos se transformando em verbo, às vezes se juntando – cabisbaixei-me, infindavam, sonhambulante – e dando uma grande musicalidade ao texto. A cultura moçambicana vai sendo passada aos poucos, em frases, na maioria das vezes, curta. O machismo pode ser revelado na fala de Fulano Malta: “Despedida é coisa de mulher”. Ou de Madzero, em O outro pé da sereia: “Adeuses são assunto de mulheres”. As diferenças entre homens e mulheres, presentes no país, aparecem quando Mia fala da vida em Vila Longe, onde se passa grande parte de O outro pé da sereia: “Quando nasce um rapaz, canta-se. Quando nasce uma menina dança-se”.

Em Estórias Abensonhadas, Mia também mostra sua capacidade de criar belas imagens. O começo de O padre surdo, uma das 26 estórias, é uma lindeza: “Escrevo como Deus: direito mas sem pauta. Quem me ler que desentorte as palavras. Alinhada só a morte. O resto tem as duas margens da dúvida. Como eu, feito de raças cruzadas. Meu pai, português, cabelos e olhos loiros. Minha mãe era negra, retininha. Nasci assim, com pouco tom na pele, muita cor na alma”.

Conheço quem não goste de Mia Couto e respeito. Mas, a mim ele faz muito bem. Vou lendo-o tranquilamente, sem pressa. E sempre.

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Nubia Silveira é jornalista.


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