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13 de janeiro de 2017
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16:24

Tão metafísicos quanto o piloto que decolou sem combustível

Por
Sul 21
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Por Nelson Rego

Dizer que é o símbolo do ano que passou um piloto e proprietário de avião que decide decolar ciente de que o combustível está no limite é pouco. Se for símbolo, ele remete ao quê? E seja o que for, é referente apenas a 2016?

Melhor é tentar entender o acontecido feito hiperlink: clique em cima do acidente e o insano que arrisca e liquida com a própria vida e as vidas de setenta outros, na presumível intenção de poupar e lucrar umas merrecas a mais com a economia de combustível, dá passagem para a metafísica. Sim, dá passagem para a metafísica, e essa afirmação é mais do que uma piada acidental e infeliz sobre o fim que veio de súbito.

Metafísica não é somente para falar de Deus, do Nada, da atemporalidade do Tempo, do lugar-zero do Espaço e de outros infinitos sobre os quais é preciso muito dizer para tangenciar dizer os porquês do impossível de eles serem capturados pelo finito da linguagem. Não é somente deixar em suspensão a hipótese de que todos esses intangíveis não sejam mais (ou não sejam menos) do que sonhos.

Metafísica também serve para fazer truques de desaparecimentos. Por exemplo, a técnica, aliás, a Técnica. As técnicas são produtos históricos, são modos de lidar com o ambiente (com as mãos, com martelos e serrotes, computadores, ideias), maneiras de não apenas nos adaptarmos ao ambiente, mas de adaptarmos o ambiente a nós. As técnicas são modos de lidar. E acúmulos de modos de lidar. E rupturas e reinvenções do modo de acumular modos de lidar com: o mundo. O mundo feito de pessoas fazendo técnicas. As pessoas fazendo técnicas conforme o mundo onde nasceram. As técnicas fazendo pessoas… Oculte-se o processo, exalte-se o produto, aliene-se a noção de que é das relações cotidianas que emergem as técnicas, o que vai para o trono? A Técnica. A Grande Deusa, essa agora que é apresentada como a razão de si mesma, sem nascimento, eterna, sem história, acima do mundo que a pariu. Semelhante ao totem cultuado como se ele mesmo fosse o deus, adorado por gerações que esfarelaram a memória de que foram seus ancestrais que o esculpiram. Quem vem ao mundo já encontra a Deusa Técnica instaurada: é preciso servir-lhe servindo à aceleração de tudo, correr, correr e correr para produzir, produzir e cumprir os prazos de multiplicadas metas. Um controle se instala: internalizar a aceleração como jeito de ser. Correr, correr e tornar-se mais carente de aparelhinhos de bolso que nos acompanharão por toda parte e que nos deixarão mais rápidos para digitar mais e mais enquanto atravessamos a rua de costas para o trânsito e somos atropelados pelo motorista que não nos viu porque também digitava em seu aparelhinho, pois precisava postar com urgência um desaforo nas redes sociais contra o sujeito que.

Isso é metafísico, não? Tornamo-nos sem corpos. Sim, sem corpos. Agora somos deuses, ascendemos para além do físico. Ou tem corpo este que vimos ainda agora atravessando a rua e digitando em seu aparelhinho e de costas para o trânsito, alheio aos motoristas alheios aos pedestres? É claro que ele não tem corpo. Tornou-se inatingível. Ele e nós e o piloto-proprietário do avião não morremos mais.

O dinheiro, por exemplo. Ele nasceu e cresceu como uma técnica para facilitar as trocas entre produtos diferentes. Quantas enxadas valem sete sacos de trigo? Valem quanto o tecido e o trabalho de alinhavar o tecido na forma de saco em comparação ao trigo nele ensacado? Complicado estar-se sempre a discutir a quantidade necessária de uma coisa para equivaler ao valor de outra coisa. O dinheiro é uma das invenções universais que demonstram para nós mesmos, atuais representantes da espécie que o criou, o quanto somos capazes de criar instrumentos abstratos para os quais podemos olhar e declararmos orgulhosos: vejam (num diálogo imaginário com os primos primatas) como somos, nós, humanos, cotidianamente geniais. Mas quem se lembra, cotidianamente, do dinheiro como uma técnica de troca para o acesso aos bens necessários? O proprietário-piloto do avião? Suponho que ele pensava no dinheiro, no Deus Dinheiro, de outro modo, como algo que se fez razão e finalidade por si mesmo, sem nascimento, eterno, sem história. Metafísico, não?

Faz lembrar aquela história do pirata (ou talvez fosse um capitão fiel à Sua Majestade, esqueci os detalhes, são parecidos demais um com o outro, confundo os tipos) que, sabendo nadar feito peixe, foi ao fundo e morreu afogado por não desabraçar o baú pesado das moedas. Ah, sim, a história é do tempo das grandes pilhagens, dos impérios competindo pela posse de mares e continentes, das aldeias tornando-se um só mundo pelo avanço das técnicas a serviço do acúmulo de moedas. Que bom que esse tempo de canhonaços e brutalidades já passou, não é? Faz quanto tempo mesmo? Antes, os impérios mandavam. A primazia agora é dos megacapitais e seus oligopólios. Talvez isso tenha reflexos na metafísica do novo cotidiano.

Talvez não sejam tão diferentes entre si o obsecado proprietário-piloto que decola sem combustível e o pedestre que vimos ainda agora atravessar a rua de costas para o trânsito e obsecado por seu aparelhinho acelerador de fluxos, alheio aos motoristas alheios aos pedestres. Acho que estamos todos, proprietário-piloto, pedestres e motoristas, transpassados pela mesma negação do óbvio perpetrada pelo cotidiano dominado pela metafísica.

Talvez não sejamos muito diferentes do gestor hospitalar obsecado em ampliar a taxa de lucro de 19,64% para 20,16%, tão obsecado que faz questão de ignorar que os técnicos em enfermagem já foram empurrados até o limite da exaustão pelo somatório do tamanho da jornada de trabalho com o esgotamento existencial causado tanto pelas condições ambientais dos recintos quanto pela penúria da remuneração. O exemplar gestor apenas reconsiderará sua última decisão (cortar a despesa do café sempre disponível para os plantonistas) quando o quase adormecido técnico em enfermagem injetar a droga errada na veia do paciente impaciente e fã de um bom tumulto.

Serão mesmo assim tão diferentes entre si as lógicas que comandam as ações do proprietário-piloto, do gestor hospitalar, do diretor disso e daquilo, do fornecedor de leite com soda cáustica, do pivete ali da esquina, do Governador do Estado, do Presidente da República e dos donos do agronegócio? Ou será que a diferença não vai além do tamanho das cifras pelas quais se atenta contra as vidas e do fato de que as consequências da conduta do proprietário-piloto tornaram-se estrondosamente visíveis de uma só vez?

Desconfio de que essa enxurrada de filmes de legiões de mortos-vivos vagando pelas ruas e estradas de um colapso global é versão caricata da observação do cotidiano metafísico.

Metafísica não é somente para falar de Deus, do Nada e de outros infinitos e tangenciar o Impossível. Ela serve para fazer truques de ocultação: esquecimentos. Por exemplo, esquecimento de que temos necessidades por algumas levezas elementares, como o descanso e a vontade de nos desligarmos da obrigação de estarmos sempre estimulados pelos ditames da Técnica que acelera horas, minutos e segundos a serviço do Grande Deus Consumo e da Grande Deusa Acumulação. Lábia metafísica é também talento para o truque de fazer desaparecer a percepção de que estamos sempre e sempre ciscando estímulos, feitos frangos estressados em regime de engorda acelerada para o abate em modernos aviários.

Qual é o truque do truque de desaparecimento? Fazer aparecer uma coisa enquanto se dá sumiço em outra. Chamar a atenção dos olhares para X enquanto se faz Y discretamente sumir de cena. Cadê o Y que estava aqui? Quem? O quê? Y? Acho que você está imaginando coisas. Nunca existiu esse tal de Y.

Por exemplo, números. Neoliberais dos anos 90 diziam: devemos privatizar em troca de RR bilhões as empresas do ramo SS para elas desonerarem o orçamento público e melhorarem os seus produtos e serviços. Neoliberais do século 21: devemos dar o dobro ou o triplo de RR bilhões para as empresas privadas do ramo SS para elas não falirem. Elas não podem falir, pois elas darão grande retorno em impostos, algum dia, após o período de estímulo da isenção fiscal e isso e aquilo e mais etc. e coisa e tal. O discurso atual é X. O discurso anterior é Y.

Números, por exemplo. Tem alguns prestidigitadores por aí acusando outros de não saberem somar dois mais dois e concluir que não se subtrai cinco de quatro sem que isso leve ao fundo do poço do endividamento. Estão certos. Estão rigorosamente certos quanto ao X, só que… cadê o Y que estava aqui e também faz parte da equação?

Tem alguns por aí acusando outros de agirem como se a instituição do Estado tudo pudesse: como se possível fosse projetar um Estado assistencialista indefinidamente, gastando por longo tempo mais do que arrecada. Como subtrair indefinidamente cinco de quatro sem que isso leve ao fundo do poço? Pode-se dizer que os acusadores estão errados? Penso que estão rigorosamente certos quanto ao X.

Mas e o Y? Por que não falam do Y? Os acusadores me pareceriam respeitáveis se também falassem do Y. Por que o aumento da arrecadação pelo combate à sonegação de impostos nunca entra em seus cálculos projetivos? Por que midiáticos paladinos da austeridade das contas públicas não citam a tremenda sonegação de impostos praticada por seus patrões privados? E por que não alterar o sistema tributário que onera muito aos que têm pouco e pouco aos que têm muito?  E essas dívidas públicas às quais se pagam vultosos juros e juros por décadas e os montantes pouco ou nada diminuem, quando e como foi esquecido o discurso que prometia fazer-lhes as auditorias históricas? Foi um truque de mágica que fez o discurso evaporar?

Está certo quem diz que não é possível subtrair cinco de quatro sem entrar no negativo. E está certo quando diz que é ladrão ou populista irresponsável ou um tolo que não sabe fazer as contas mais simples quem diz o contrário. Mas não é respeitável o acusador que se empenha em esquecer o fato de que o quatro poderia virar seis se não fossem feitas vistas grossas ao sumiço daquele Y que sistematicamente fica fora das contas.

Seria somente uma comédia e tanto se todos esses truques dos matemáticos de última hora para focar holofotes em X e ocultar Y não redundassem em penúrias alimentares, educacionais, hospitalares, habitacionais, e não partilhassem da mesma história global que conduz à metafísica do Deus Dinheiro que seduz o piloto a decolar com o combustível apertado no limite. Esses fazedores de contas pela metade não são um bocado parecidos com o condutor do avião no que se refere ao descaso com a vida dos outros?

É muito truque de desaparecimento, é muito esquecimento do que não pode ser esquecido, são muitos adoecidos pilotando estranhas naves, não há cotidiano que não imploda e exploda sob o peso de tanta metafísica que nos conduz ao esquecimento do básico da vida: a vida.

É bom não esquecer que até o FMI enfim lembrou que Y pode entrar na equação: em 2016, publicou estudo refletindo sobre as evidências de que o receituário adotado desde o chamado Consenso de Washington, em 1990, causa efeitos nocivos de longo prazo, por ampliar a concentração da renda e levar a desigualdade a níveis que colocam em risco a própria sustentabilidade do sistema. Até o FMI…

O tal receituário é esse mesmo que já andou em voga no Brasil e no RS, nunca deixou de se fazer influente e agora se reapresenta com mais força do que antes. Até o FMI começa a refletir sobre a distância que existe entre a abstrata teoria do receituário e as contingências de sua aplicação no mundo concreto, para o qual continua verdadeira a afirmação de que método comprovado para aumentar o fosso da desigualdade é tratar como iguais os que foram conduzidos a se tornar terrivelmente desiguais através da história.

Talvez até os inteligentes rapazes do MBL consigam entender que está tudo metafísico demais, que o adoecido proprietário-piloto que decolou ciente da escassez do combustível não era muito diferente de outros tantos que andam por aí, por aqui. Talvez entendam que a metafísica do esquecimento da vida em troca de obsessões não fez morada só na cabeça daquele adoecido.

Talvez até os mais inteligentes rapazes do MBL consigam entender que até o FMI está dando o recado para a ultrapassagem da metafísica gestada nos últimos séculos e acentuada nas décadas recentes.

Quantos séculos de história global insana são necessários para que um homem ache que está tudo normal ao decolar ciente de que o combustível está no limite do limite, em troca da chance de poupar algumas moedas? E para produzir a cena do pedestre que atravessa a rua fetichizado pelo aparelhinho que o torna alheio aos motoristas que aceleram alheios ao pedestre?

De quanto materialismo vulgar precisa a metafísica para multiplicar mortos-vivos crentes de serem deuses acima da mais básica noção de limites? De quanta metafísica precisa o materialismo vulgar para não se enxergar no espelho dos acontecimentos estúpidos?

Collage de Mariah de Olivieri

 

Fotografias de Juliana Sommer

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Nelson Rego é escritor. http://www.nelsonrego.art.br/ Professor no Departamento e no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Sua coluna é publicada quinzenalmente no Sul21.


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