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30 de dezembro de 2016
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10:00

Enquanto uns apatifam, outros elevam a existência

Por
Sul 21
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imagem-para-a-chamada-2Por Nelson Rego

Em 2016, ano medonho para as escolas, assisti o mais bonito, simples e profundo evento relacionado à Educação em minha vida. Fui convidado por uma ex-aluna a estar presente na homenagem a um ex-aluno. Fui, vi e…

Foi profundo porque foi simples. Eram dois adolescentes e um adulto os homenageados, os três são o que, talvez por distração, chamamos de deficientes. Eraldo, meu ex-aluno, tornou-se cego. Os dois adolescentes, Cláudia e Paulo, nasceram – e quase não nasceram – com danos neurais que hoje se refletem nas limitações severas para os movimentos e moderadas para as falas. Eraldo foi diagnosticado como endereçado sem volta à morte durante o prolongado coma causado por doença súbita e grave. Voltou. Mas pagou pedágio, deixou algo para o lado de lá ao voltar para cá. Cego, tornou-se multi medalhista em competições de nado em piscinas, lagos e mar aberto. Cláudia é dançarina, ela cria movimentos de ramagem soprada desde a brisa até ventos fortes com os giros e volteios de sua cadeira de rodas, ela é uma menina de pensamentos muito bem articulados, expressos através de sua dicção truncada. Paulo também é um dançarino: das lutas marciais. Ele será reconhecido como um pensador juvenil pelo ouvinte que não se deixar iludir pela dificuldade da fala. Foi simples porque os professores da Escola Professora Maria Gusmão Britto valorizaram o básico: apresentaram com sensibilidade os três homenageados, pediram que eles falassem um pouco de suas vidas, deixaram que as duzentas ou trezentas crianças presentes na plateia conversassem muito com Cláudia, Paulo e Eraldo.

Foi bonito, mais que bonito. As falas juvenis de Cláudia e Paulo encontraram-se na diferença com o depoimento adulto de Eraldo. Onde Cláudia e Paulo esbanjaram vibração positiva e adolescente, Eraldo causou impacto profundo pela franqueza e por dispensar a máscara do lugar-comum que diz que se deve apresentar o mundo às crianças somente através de lentes cor de rosa.

Eu escrevi “falas juvenis de Cláudia e Paulo”? É melhor explicar direito isso. A vibração positiva e adolescente ficou por conta dos sorrisos abertos em ensolaradas luas crescentes de orelha a orelha, pela faceirice de estarem no palco, pelas risadas por acharem graça das próprias atrapalhadas ao falar, pelo brilho nos olhos ao contarem sobre estudos escolares e as danças e lutas e artes que gostam de praticar. Mas é bom explicar direito: poucos adultos teriam explanado com tão grande poder de convencimento sobre a necessidade renovada todos os dias de superar o fracasso para chegar ao triunfo, e não o triunfo contra alguém, mas o triunfo feliz de perseverar na superação das dificuldades. Cláudia e Paulo não esconderam seus tombos e feridas, falaram sorrindo de seus temores, sorriram mais ainda ao contarem sobre as vitórias.

Eraldo causou impacto. “Eu perdi tudo, perdi a minha autonomia, perdi o meu trabalho, perdi a minha vida ao perder as coisas mais cotidianas e simples, que só valorizamos quando as deixamos de possuir”, respondeu para a menina que lhe perguntou como foi perder de repente a visão, respondeu para o silêncio absoluto da plateia das crianças. “Eu perdi tudo”, respondeu o adulto que se tornou campeão e colecionador de medalhas às dezenas depois de cego. O sorriso e a lágrima na face de Eraldo se completaram, disseram o quanto é possível estampar no rosto a serena coexistência da felicidade com a tristeza.

Naquele momento, para crianças, adolescentes e adultos ali reunidos, o silêncio disse a todos que algo diferente acabara de acontecer. Inusitado por dispensar a máscara mais óbvia que se espera de um campeão, Eraldo estava lá, no palco, diante de centenas de até então desconhecidos, revelando-se imensamente frágil, esmagado, quando todos estavam a homenagear a fortaleza da sua vontade de viver. De um instante para o outro o fluxo se invertera: era Eraldo quem estava a nos homenagear. “Sei que posso confiar em vocês, posso desvestir a fantasia de super-herói e me apresentar como verdadeiramente sou, esmagado pela rocha, obrigado por me acolherem para além da vontade de forjar uma lenda”, foi como se Eraldo houvesse dito algo assim com a lágrima e com o silêncio que se prolongou depois da declaração de que perdera tudo. Sim, os homenageados éramos todos, pela irrupção da sinceridade que se fez possível, pela antinomia do sorriso e da lágrima, da felicidade e da tristeza, da força que pôde apresentar o quanto sinuosos são os seus caminhos.

Lembrei do jovem Eraldo que foi meu aluno. Dez anos antes? Pouco mais? Um estudante criativo e dotado de ironia, crítico das hipocrisias, incluindo as acadêmicas. Lecionou em escolas depois de formado. Adoeceu. Ficou cego. Tornou-se multi medalhista em diversos tipos de competições de nado. Agora eu o reencontrava. De algum modo, era ainda o jovem sempre pronto a romper com a comodidade viciosa das aparências, mas o sorriso estava muito além da antiga e habitual ironia, o sorriso era outro. Obrigado, Mariane, amiga de Eraldo, querida ex-aluna, que me convidou e me trouxe hoje aqui, em sua escola, para assistir a homenagem, pensei enquanto escutava o silêncio da professora Mariane sentada ao meu lado.

E a tarde e a conversa das crianças com Cláudia, Paulo e Eraldo prosseguiam. Com que idade Cláudia, que não caminha, sentiu vontade de ser dançarina? Quando era criança, ela respondeu e continuou em sua fala transbordante de alegrias, sem se dar conta de como foi engraçado e querido escutar um “quando eu era criança” dito por uma ainda criança. E Paulinho? Nunca sentiu medo de adversários maiores, mais fortes, sem deficiências? Sim e não, sempre e nunca, foi o que entendi de sua resposta. E entendi que seria preciso que eu conhecesse mais a fundo o desafio e a ética das artes marciais para entender a plenitude da resposta. Eraldo nunca pensou em adotar um cão-guia? Sim, ele adora cachorros, tem dois em seu apartamento. Mas desistiu da ideia do cão-guia quando soube que ele obrigatoriamente deve ser devolvido e trocado por outro após sete anos, trata-se de um contrato derivado da necessidade do fornecedor assegurar-se sobre prazo de validade e qualidade dos serviços prestados pelo cão. Como ele poderia devolver um amigo de sete anos se bastaria um dia para Eraldo se afeiçoar ao cachorro?

E aconteceu Camila, irmã de Cláudia, no decorrer da tarde: a conversa revelou que Cláudia e Camila são órfãs desde cedo de pai e mãe e que Camila, com idade nem tão superior assim à idade de Cláudia, adotou a irmã como filha. Aquela tarde dedicada a homenagear três heróis revelou que até mesmo nós outros, pessoas normais, destituídos da fortuna de portarmos deficiências que elevam a vida, podemos ser também heróis.

A jornada estava prevista para terminar às 17h, terminou bem depois: no final, as crianças subiram ao palco para abraçar Cláudia, Paulo e Eraldo, conversar de pertinho, tirar fotografias ao seu lado. Nada ensaiado. Disseram-me que aquela foi a primeira vez que isso aconteceu no Fórum Gusmão por um mundo melhor. Fui também ao palco. Quis ver Eraldo de perto. Esperar que todas as crianças lhe abraçassem, tirassem fotos, continuassem a conversar, para então também lhe abraçar. Anoitecera quando consegui. Meu ex-aluno teve a sua jornada de ídolo pop? Não exatamente. Foi muito mais do que isso.

Professora Luciana e professor João foram os mestres de cerimônias da jornada. Em 2013, eles estiveram entre os idealizadores do Fórum Gusmão por um mundo melhor, que ganhou novas edições em 2014 e 2016. A cada edição, o Fórum tanto recebe convidados quanto valoriza as iniciativas das pessoas da própria Escola Professora Maria Gusmão Britto. Realiza no transcorrer de alguns dias atividades variadas que se conectam, ensinado na prática a confluência entre ecologia, política, saberes diversos e artes. A jornada com Cláudia, Paulo e Eraldo foi intitulada Heróis da Super Ação.

Este texto do professor João apresenta o objetivo do Fórum:

O Mundo está em transformação tanto para o bem, quanto para o mal. Cabe a cada um de nós fazer a sua escolha. Ou continuamos caminhando para o nosso extermínio como raça humana, espalhando a guerra, a desigualdade, o preconceito e a corrupção ou mudamos! Mudança esta que significa uma verdadeira revolução na forma de ser e conviver! Não há mais tempo. Precisamos mudar. Ou estaremos fadados à extinção. Ou talvez apenas à sobrevivência em um mundo feio, poluído, violento e egoísta.

Não há mais espaço para a indiferença. Não adianta mais fingir que não está acontecendo. É preciso que você faça sua escolha. A ignorância e a inocência não têm mais lugar num mundo informado e globalizado.

Por isso, o Fórum Gusmão! Queremos, através desse evento, fazer a nossa parte como educadores e como seres humanos na construção de alternativas para outra forma de viver e conviver. Queremos espalhar o bem: a igualdade e a diversidade, a justiça e a liberdade, a responsabilidade e a luta!

Nossa arma? A Educação! A Educação pode revolucionar, plantando essas sementes em mentes e corações que fazem parte de nossa escola. Queremos que esse fórum se multiplique pelo mundo afora, queremos nos unir a escolas, a pessoas, a grupos e instituições que espalham a semente do bem!

A luta está declarada! Que venha o Fórum! Um espaço de arte, de pensamento, de diversidade, de ideias e, principalmente, de ações individuais e coletivas que transformem, que revolucionem… primeiramente, a nós mesmos e, depois, o mundo ao nosso redor!

A Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Maria Gusmão Britto, em São Leopoldo, me pareceu uma casa extraordinária, que me fez acreditar que alguns dos alicerces necessários para um mundo melhor podem ser de fato construídos a partir do cotidiano escolar.

No ano em que um político boçal declarou que tropas de choque devem acionar armas contra professores que protestem contra o aviltamento da Educação, assisti ao evento bonito, simples e profundo.

Obrigado, Cláudia Peres, Paulo Henrique Amaral da Silva, Eraldo Fortini, Camila Fleck, João Alexandre Corrêa, Luciana Andreis, Mariane Batista e tantas outras pessoas de várias idades que fizeram a jornada da tarde-noite de 5 de outubro de 2016, e a recriam através de formas múltiplas todos os dias.

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Nelson Rego é escritor. http://www.nelsonrego.art.br/ Professor no Departamento e no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Sua coluna é publicada quinzenalmente no Sul21.


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