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23 de setembro de 2016
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11:00

Falta pouco para a ditadura com urna e voto

Por
Sul 21
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Por Nelson Rego

Os donos do Brasil Colônia e seus aliados, seguidores e puxa-sacos não poderão me acusar de falta de atitude colaboracionista. Observando seus atos recentes, deduzo os próximos e, para comprovar minha boa vontade, ajudo com alguns apontamentos para sistematizar a sua agenda em prol de uma ditadura de novo tipo, com eleições para todos os níveis executivos e legislativos.

Produzir euforia

É preciso acelerar a entrega do pré-sal para as grandes companhias petrolíferas internacionais. Urge fazer entrar dinheiro novo na economia do país, isso desencadeará a retomada do crescimento. Produzirá uma sensação de alívio que, logo, logo, com o decisivo estímulo da mídia parceira, se tornará euforia, uma grande onda na qual surfarão os caçadores de esquerdinhas. Que importância pode ter a indagação sobre a renovada estabilidade econômica ter ou não bases seguras, ser ou não duradoura? Importa é o momento, o resto é abstração. Vale é a imagem construída pela mídia parceira em cima do momento, a imagem permanece, a vontade de entender uma trama complicada evapora. Não é assim que acontece sempre? A entrega do pré-sal será como vender por vinte reais uma nota de cem? E daí? A mídia parceira se encarregará de elogiar nas manchetes a entrada dos vinte e ocultar o bye-bye dos oitenta. Não foi assim com a Vale do Rio Doce?

Contar a história

Tudo se torna administrável mediante o modo de contar a história, pela produção de imagens convenientes (ao menos, pode-se tentar que assim seja). Então, toca a aproveitar o próximo momento de euforia para golpear a comunicação alternativa que destoa da mídia parceira do Brasil Colônia. Refiro-me a essas midiazinhas e redezinhas que ficam por aí vazando o lado avesso do noticiário e até dão voz ao que é dito sobre o Brasil no exterior. Essas midiazinhas e redezinhas enjoadas tanto batem na mesma tecla que acabam obrigando o bom oligopólio midiático a dar algum espaço para o lado dos acontecimentos que lhe é desagradável. A mídia grande precisa preservar a sua imagem, não pode causar a impressão de que absolutamente não viu a recente marcha de cem mil pessoas, nem soube dos editoriais dos jornais lá fora acusando que houve golpe aqui dentro, não viu a polícia explodir à toa o olho da menina. Para preservar a autoproclamada imagem de isenção, é preciso ceder um espacinho para o contraditório. Isso é chato, é muito chato. Por que conviver com esse aborrecimento? Aproveite-se o momento de euforia, programado para vir em breve, e programe-se junto uma cacetada nesses meios alternativos de comunicação. Limite-se o acesso à internet de um modo como não ocorre em outros lugares do mundo, desconstitua-se o Marco Civil, torne-se caro o acesso. Arranje-se pretexto de responsabilidade social e jornalística para acabar com essa midiazinha enjoada. Engendre-se alguma lei, seis anos de cadeia para quem criticar político que esteja a serviço dos donos do Brasil. Mais tempo de cadeia para os reincidentes, óbvio. Precisamos de leis retroativas e aplicadas com celeridade, prisão perpétua para o Latuff e outros chargistas, quero ver se esse incômodo não termina logo. Crie-se o Ministério da Ordem para fiscalizar a responsabilidade social e comunicacional. De início, parecerá um pouco violento por causa da mentalidade permissiva dos últimos tempos, mas quem noticiará os atos repressivos? As midiazinhas? As redezinhas? Bem, justamente essas é que serão postas sob a nova regulação, portanto, estará resolvido. Deixe-se passar um pouco de tempo e pronto, a breve fase de transição será esquecida, pois a história continuará sendo contada somente pela mídia parceira. A liberdade de expressão deve ser defendida como um princípio intocável, desde que seja a expressão que interessa.

Os estabelecidos devem estabelecer as prioridades

Com a euforia programada e o apoio das mídias parceiras, fica escancarado o trajeto para a rápida reforma radical do Estado, rápida que nem um tiro. O Estado deve ser eficiente. Ser eficiente é estabelecer prioridades e cumpri-las. Quais são as prioridades? Quem as estabelece? Os estabelecidos. Eles dizem, através de seu controle sobre as comunicações, que as prioridades são duas. A primeira, o Estado deve reduzir a zero os gastos com políticas sociais e injetar mais dinheiro nas contas dos donos do dinheiro, isso acelerará o giro financeiro, o que é bom para todos. Isso já foi explicado para o povo em outra época, há quarenta ou cinquenta anos, mas o povo é esquecido, então convém repetir: para repartir um bolo, é preciso primeiro fazer o bolo. Pode demorar um pouco, outros cinquenta anos, ou mais, mas é preciso ter certeza de que o bolo está mesmo grande antes de se pensar em convidar mais gente para provar uma fatiazinha. Deve-se confiar na eficiência dos gestores da assimilação da esfera pública pela privada. Deve-se também confiar no prestimoso apoio da mídia parceira, que saberá trazer de volta à cena a imagem de um povo brasileiro alegre e ordeiro, que sabe esperar sem perder a faceirice tropical. A segunda prioridade é a polícia militar. O resto é o resto. Deve-se prestar atenção no que dizem os estabelecidos.

Endeusar a eficiência e a força que a mantém

Educação, saúde, aposentadoria, direito à moradia, fomento à ciência, isso tudo é o resto. O resto não deve ser prioridade para o Estado. O resto é um conjunto de chances para negócios e, por consequência, boas soluções serão engendradas automaticamente pelo crescimento do bolo. Talvez demore um pouco, mas acontecerá, e a mídia parceira por certo cumprirá o seu papel na disseminação dessa fé. Enquanto isso, o Estado deve restringir-se ao exercício de sua própria essência: a repressão da desordem. A partir dessa premissa, o único encaminhamento lógico torna-se evidente: despesas com salários de médicos, professores e outros profissionais não essenciais devem tender à extinção, liberando o orçamento do Estado para elevar prodigiosamente os ganhos dos policiares militares, que tanto mais serão recompensados quanto mais se mostrarem dispostos a cumprir com entusiasmo ordens para baixarem o sarrafo nos médicos, professores, estudantes e outros que eventualmente venham a se mostrar refratários à compreensão da nova harmonia social e cometam ilícitos, tais como protestos em vias públicas. Por mais que se elevem os salários e incentivos dos policiais militares, o orçamento destinado à segurança permanecerá abaixo do volume antes comprometido com o custeio daquelas atividades não essenciais. Enfim, eficiência: haverá superávit no orçamento público e esse excedente poderá ser transferido do Estado para os empreendimentos da iniciativa privada, acelerando a gestação do bolo que, mais adiante, algum dia, saciará a todas as demandas sociais.

Cercar

Enquanto o futuro não chega, haverá desequilíbrios, o que talvez gere algumas tensões, mesmo que a mídia parceira faça a sua parte ocultando os fatos. Novamente a solução é indicada pelas duas palavras deusas: eficiência e ordem. No caso, eficiência na aplicação da ordem. Há um acúmulo de experiências quanto ao uso de muros, grades, câmeras e tais coisas. Aplique-se. E amplie-se. Por que as casas de pessoas em boa condição devem permanecer cercadas? Inverta-se: as favelas e os bairros onde existe o caldo no qual germinam os bandidos é que devem ser cercados. É tão simples. Formule-se lei que obrigue os moradores desses lugares ao uso de chips de localização. Pronto. Isso e mais uma polícia bem equipada e entusiasmada e o problema estará, não digo resolvido, mas posto sob o controle. Aliás, não está resolvido o que está posto sob o controle? O que impede a tomada de soluções práticas já agora? Essa maldita relatividade de valores que nos foi impingida pela cultura inventada e alastrada por esquerdinhas e humanistazinhos. Mas a luz no fim do túnel já se avizinha: a euforia aquela, programada, só está esperando o sinal para girar a chave de ignição e dar a partida. Não se pode perder a oportunidade do momento para traçar o longo período por vir. Ah, sim, mas a enjoada rotina de fazer eleições não poderá prejudicar a consumação da agenda para esse longo período? Depende. Se novas leis eleitorais cercarem as alternativas impertinentes, se juízes e demais agentes da Lei se comportarem com a parcialidade característica de uma torcida organizada e se um consistente pacto midiático contador de histórias estiver a produzir corações e mentes e votos, o problema estará resolvido, posto sob o controle. Ninguém poderá dizer que não se trata de uma democracia.

Composição com desenho e fotos de Larissa Arvelos
Composição com desenho e fotos de Larissa Arvelos

Noticiário seletivo é isso aí

Em 27 de maio, publiquei este texto no Sul21:

“Roteiristas trabalham dobrado na Central Globo de Produções. Quero ver como será a construção midiática da narrativa Temer-coitadinho-nada-sabia-sobre-a-conspiração-exposta-por-Jucá-e-é-tudo-invenção-do-Jucá.”

Está visto como foi. Jucá sumiu rapidinho do noticiário, bem rapidinho mesmo. Um desaparecimento espantoso de tão rápido que foi. Os roteiristas nem precisaram trabalhar dobrado, a direção geral mandou atalhar o caminho em direção ao esquecimento.

A guerra pela representação do mundo

Claro que não passará por corações e mentes dos partidários do projeto Escola Sem Partido organizar também o movimento Imprensa Sem Partido.

Collage de Mariah de Olivieri
Collage de Mariah de Olivieri

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Nelson Rego é escritor. http://www.nelsonrego.art.br/. Professor no Departamento e no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Sua coluna é publicada quinzenalmente no Sul 21.


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