Mogli Veiga (*)
A Sérgio Britto, in memorian.
A noite caia lentamente, como a chuva fina que, apesar do início do verão, dava ao ambiente um ar de inverno.
Um homem dobra a esquina caminha muito lentamente, amparado por uma bengala, arrastando os pés, demonstrando dificuldades de locomoção. Toda sua vestimenta era preta: camisa, terno, o chapéu coco e a capa gabardine comprada na sua última temporada em Londres. Sérgio era seu nome.
Durante sua caminhada, ele parava e olhava a luz do poste para admirar os pingos finos refletirem seu brilho na luz de mercúrio. Quem o via, distinguia apenas uma silhueta na noite.
No seu lento caminhar, a cada parada, dava a sensação de quem não quisesse chegar ao seu destino. Pressentia que, talvez, este fosse o último encontro.
Na rua apenas alguns carros espalhava os pingos caídos no asfalto sem provocar danos em quem, por ventura, estivesse na calçada.
Quando chegou ao seu destino, dobrou a esquina para entrar no prédio por uma porta lateral. Antes, parou e olhou mais uma vez para a lâmpada do poste, mas esta estava queimada e ele não pode ver a chuva.
Correu a mão pela capa, tentando eliminar a água depositada. Tirou o chapéu, sacudiu, deu meia volta e entrou. A passagem remetia a um corredor estreito, longo com uma iluminação em penumbra. Das paredes pendiam pôsteres de todos os encontros que o local presenciou. Em alguns estampavam sua foto. Ali, havia construído sua morada. Ali, passou grande parte da sua vida. Ali chorou, riu, fez rir, emocionou os presentes e se emocionou. Naquele lugar, conviveu com vários personagens e transcendeu a vida real.
No fim do corredor algumas salas serviam de camarim. Ao chegar encontrou seu amigo Britto que lhe perguntou:
– E aí, preparado para a função de hoje?
– Eu sempre estou preparado. Eu já nasci com isto.
– Não vai tirar essa capa molhada?
– Não precisa, ela faz parte da nossa arte, fazer da realidade uma fantasia.
A conversa continuou, com os dois acertando a participação de cada um na função.
Sérgio, então disse ao amigo:
– Vamos ver como está a plateia. E subiram até o palco. Entraram pela coxia, foram até onde as cortinas se encontram, abriram uma fresta e começaram a trocar impressões.
– Britto veja quem está na fila do gargarejo: o Procópio Ferreira e o Ziembinski conversando com a Cacilda Becker.
– Olha o lado direito: Jardel Filho, Carlos Zara e Paulo Pontes.
-Uhau! Vai ter casa cheia. Veja junto ao corredor a menina Dina Sfat, a Leila Dinis, a Marília Pera…
– Sim, do outro lado estão os Paulos: Gracindo e Autran que riem das piadas do Hugo Carvana. Junto com eles o José Wilker e o Paulo Porto.
– Sérgio veja quem acaba de chegar, a Eva Tódor.
– Ok, vamos iniciar. Voltaram ao camarim, beberam água e subiram de novo ao palco, aguardando a entrada.
As cortinas se abrem. No centro do palco uma luz ilumina uma cadeira e um cabide. Sérgio entra devagar, mas pisando firme. Não parecia o mesmo homem de meia hora atrás. Caminha até a cadeira, encosta sua bengala, tira o chapéu e a capa dependurando no cabide. Vira para a plateia que aplaude calorosamente. Caminha até a boca de cena, abre os braços e saúda o público curvando-se.
Quando as palmas cessam, ele volta à posição normal, abre os braços e diz.
– Queridas amigas e amigos, obrigado pela presença nesse grande encontro na nossa casa, nossa “república”. Eu, Sérgio e meu amigo e parceiro inseparável Britto, estamos aqui hoje para prestar, talvez a nossa derradeira homenagem àquilo que foi nossa e de vocês, a vida.
Volta para o centro, parando junto à cadeira e começa sua interpretação. Olha para um lado, olha para o outro, desvio o olhar para o fundo da plateia como se estivesse diante de uma orquestra. Move os braços dançando ao som dos instrumentos. E diz.
– Nós, durante anos, pisamos esse terreno sagrado, fomos reis, rainhas, mágicos, palhaços, bailarinas, soldados, cidadãos comuns, mulheres sofridas, perseguidas, vilões e vilãs, cafetões e prostitutas, e muitos outros personagens que a vida real produz aos borbotões. Faz uma pausa, respira fundo e continua.
– Nós fizemos rir e chorar, matamos, provocamos suspense, dançamos, gritamos, e outras coisas impensáveis. Sempre um fluido de emoção suspenso no ar. Nós que tivemos o dom de tirar as pessoas da realidade, levá-las ao mundo da ficção e trazê-las de volta ao mundo real. Mais uma pausa.
– Quero gritar com todas as forças que ainda me resta: Nós não morremos, nós não morreremos, nós viveremos. Até a eternidade.
Nesse templo sagrado do teatro, estiveram conosco, ocultos na maioria das vezes, mas que faço questão de citar alguns, sem desmerecer os demais: Vianinha, Pirandello, Molière, Tchekóv, Millôr, Plínio Marcos, Guarnieri, Zé Celso, Boal, Dias Gomes, Fassbinder e tantos outros. Ah! Gênios.
– Quero dizer aos que ficam.
Volta à boca de cena, abre os braços e grita.
– Besteirol, vocês não passarão. Resistiremos juntos segundo o lema de um por todos e todos por um.
Deixa os braços caírem junto corpo e, com ar de cansado volta para a cadeira. Vira-se para o público e se curva, permanecendo assim até terminar os aplausos. Pega seu chapéu, coloca a capa sobre o braço esquerdo, acena para o público e se dirige para a coxia. As cortinas se fecham, as luzes se apagam.
Sérgio caminha pela rua sob a chuva fina, lentamente. Já não mais olha a chuva no brilho das lâmpadas de mercúrio. Era como se elas estivessem apagadas. Enquanto caminhava ia recitando em voz muito baixa, como um mantra: resistir, resistir, resistir…
(*) Mogli Veiga é engenheiro.