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8 de novembro de 2017
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16:04

A casa com varanda

Por
Sul 21
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A casa com varanda
A casa com varanda
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Mogli Veiga

Depois de muitos anos, eu voltava à minha terra natal. Queria rever o lugar onde passei minha adorável infância, O vale do Rio Quissamã.

Embalado pela música de Elis Regina nos fones de meu telefone, desci do ônibus no centrinho do bairro Itamarati, lugar de grandes lembranças. Encontrei o Bar do Morgado, um típico pé-sujo, mas não era mais o mesmo da minha infância e adolescência. Entrei sentei numa mesa e pedi uma cerveja – Bohemia, sem dúvida. Nem mesmo a cerveja era mais como naquele tempo, mas o medo de enfrentar o passado era mais forte. Necessitava aplacar minha ansiedade. Precisava de um estímulo. Olhei as pessoas em volta, as que passavam pela rua. O seu comportamento ainda guardava a vida simples típica de uma cidade o interior. Aquilo não havia mudado tanto.

Estabelecida à calma, segui meu caminho. Passei pela antiga fábrica de veludo e cheguei à escadaria que dava acesso à casa da avó. Desci devagar, degrau por degrau até o local procurado. Era a última casa da servidão que terminava à beira do Rio Quissamã. Ao chegar, a primeira surpresa, a casa não existia mais. No seu lugar, dois pequenos edifícios baixos, com três andares. Mas eu não os via. Enxerga apenas o espaço que foi meu paraíso.

Parado em fronte aos prédios, consegui ver, nitidamente, o que tinha sido aquilo. Uma casa simples com uma varanda pequena e acanhada no lado direito, espremida pelo muro alto da casa vizinha, separada por uma calçada estreita que circundava toda a casa. Ao lado esquerdo, a calçada dava acesso a um amplo terreno limitado pelo rio e uma grande pedra no meio. Ali era nosso quintal, meu e dos meus primos e primas. Afinal aquela região está localizada entre montanhas. Nele havia um pomar: jabuticaba, goiaba, pitanga, araçá, abacate, laranja, limão galego, ameixa amarela e… Junto à pedra, que era nossa montanha, havia morango e framboesa. Neste espaço, nós brincávamos como nos versos da música de Hélio Contreiras, imortalizada por Eugênio Avelino, o Xangai: Estampas Eucalol.

… Subia o monte Olimpo / Ribanceira lá do quintal / Mergulhava até Netuno / No oceano abissal / São Jorge ia pra Lua / Lutar contra o dragão / São Jorge quase morria / Mas eu lhe dava a mão / E voltava trazendo a moça / Com quem ia me casar / Era minha professora / Que roubei do Rei Lear

Naquele mundo passávamos nossas férias. A viagem estava em nossa imaginação.

Nos fundos da casa, o espaço sagrado dos animais: cachorros, gatos, galinhas, as gaiolas de coelhos e codornas, o chiqueiro dos porcos.

A entrada era através de um portão que interrompia o muro baixo, caiado. Dentro junto ao muro, tinha um jardim. No lado da varanda acanhada, junto ao muro do vizinho, uma palmeira de jardim e hibiscos com suas flores vermelhas. No lado esquerdo: cravos, rosas pequenas e lírios brancos com seu pistilo amarelo que nós chamávamos de pequeno pinto.

Os cômodos mais importante de uma casa são a cozinha, onde as pessoas de encontram em torno da mesa. Ali se conversa, se briga, confraterniza e descobre as delícias da comida. O outro é a varanda, onde as pessoas passam horas, fazendo as mesmas coisas que se fazem na cozinha, apenas em quantidade mais sóbrias e fica vendo a vida passar.

A varanda da minha vó era pequena, sem vistas para nada interessante, pois o terreno da frente fornecia apenas um barranco como vista. Era como se a vida exterior não existisse.

Para mim uma varanda não tinha nenhuma serventia. Era um espaço inútil. Nem para brincar de esconde-esconde servia. Mais tarde, já na adolescência, quando iniciei nas artes do namoro, descobri a importância da varanda. Um domínio onde os pais permitiam o encontro mais próximo e, por vezes mais íntimo, mas sem deixar de estar sempre atento às entradas tempestuosas de algum membro da família inimiga. Os mais frequentes eram as mães e os irmãos mais velhos. Sempre estavam presentes os sustos nas noites de quarta-feira.

Nunca esquecerei o dia em que minha avó recebeu a visita de uma família amiga. Um casal e sua filha. Eles ficaram conversando na varanda acanhada, tomando chá e comendo broa de milho.

Menina tinha os cabelos negros e bem lisos. Seus olhos eram duas esferas perfeitas, como se fossem feitas de azeviche. Ela virou o alvo dos meninos, que desfilavam em frente a varanda na sua dança de sedução. Em uma das passagens resolvi passar bem devagar e fitar aqueles olhos negros. Minha avó que gostava de música, não sei se de propósito ou não, colocou para tocar na vitrola a música Ochi Chornye (Olhos negros).

Passei e fui em direção ao quintal, ao pomar. Ao dobrar a esquina da casa, estava diante da jabuticabeira repleta de frutos negros redondos.

Ali chegava o fim da minha visita. Depois dessa lembrança, precisava de mais uma cerveja. Dei meia volta e fui direto ao Bar do Morgado. Sentei pedi a cerveja e uma dose de cachaça. Ali passei um bom tempo perdido nas minhas doces recordações. Já mais calmo resolvi ler um pouco. Tirei do bolso do casaco uma edição pocket de um romance de autor não conhecido: Olhos negros da menina na varanda.

***

Mogli Veiga, engenheiro, para o Sul21.


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