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29 de julho de 2017
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10:00

O empate preventivo

Por
Sul 21
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O empate preventivo
O empate preventivo

Mogli Veiga

O grupo de amigos se reunia semanalmente, para conversar, sobre tudo, para beber, e tudo mais que achasse importante. Era quase um consultório psiquiátrico. Entre eles valiam os princípios da lealdade, da franqueza e da solidariedade.

As esposas, namoradas e companheiras no início até acompanhava o grupo, mas com o passar dos tempos foram abandonando, ficando só algumas amigas. Diziam: isto parece uma reedição do filme Invasões Bárbaras, de Denys Arcand (2003).

Em uma dessas reuniões, André comentou que sua companheira tinha viajado a trabalho e ele estava com saudades, pois ela estava fora há duas semanas.

A turma não perdeu a oportunidade de praticar um bullyng e passaram a tecer comentários sobre a fidelidade de sua companheira. Ela a defendia com todos os argumentos possíveis.

– Não te preocupa, todo mundo passa por isso.

– Eu não me preocupo, pois isto pode acontecer a qualquer um.

– Sempre tem a primeira vez.

– E sempre poderá ocorrer outras vezes, mas isso a incomoda a gente. Ah! Se incomoda!

– A monogamia é um tabu religioso. Nós temos a obrigação de derrubar.

– Mas eu sou ateu. Isso não cola em mim.

– E são as mulheres se encarregarão disto.

E assim passaram horas filosofando sobre a fidelidade, as consequências de ser trocado, entre outras teses mais espetaculares, até que Marcelo disse: – eu tenho uma tese infalível para o tema.

Todos fizeram silêncio esperando a novidade. A redenção do macho. Marcelo então discorreu sobre sua tese.

– O negócio é praticar o empate preventivo, ou seja, se teu par viaja você deve procurar alguém para substituí-la durante a ausência. Se por acaso ela encontrar alguém, no final, o jogo terminará empatado. Se for você quem viaja, deve seguir o comportamento colorado. Um jogo fora de casa é mais tranquilo, pois não tem a pressão da torcida e, da mesma maneira, se ela arranjar outro na tua ausência o jogo continua empatado. É o empate preventivo. Era uma lógica perfeita.

E assim seguiram entre risadas e discussão sobre a tese, até o momento em que álcool começava a impedir qualquer possibilidade de raciocínio e o sono os empurrava para casa.

Passaram-se três semanas, a companheira do André havia voltado e, ao saber da discussão, ria das loucuras do grupo. Somente o Marcelo deixou de comparecer, não atendia telefone, não respondia e-mails, saiu das redes sociais e ninguém sabia dele. Já estavam montando uma brigada de resgate para salvá-lo seja lá do que fosse. Passada três semanas ele apareceu. Por óbvio, todos queriam saber o que havia ocorrido. Marcelo trazia uma rosa na mão que depositou sobre a mesa e pediu ao garçom para lhe servir uma dose dupla de cachaça.

Todos se entreolharam, mas não disseram nada, esperaram o Marcelo contar e se ia contar. Este então olhou um por um dos membros da mesa. Um olhar bem profundo e deu numa gargalhada tão estrondosa que as outras pessoas olharam espantadas.

– Pessoal, minha esposa viajou na semana passada para ver uma proposta de trabalho em São Paulo. Quando voltou pediu para me sentar, ela tinha que me contar um fato ocorrido. Marcelo falava e ria, muito e alto.

– Obedeci, sentei e fiquei ouvindo.

– Amor você sabe onde e o que fui fazer, mas aconteceu algo vai mudar nossas vidas. Quando sai da entrevista, peguei o metrô para ir ao hotel. Era hora de pico e o trem estava lotado. Uma parada antes de eu descer, um homem abrindo espaço entre os passageiros parou atrás de mim aguardando o trem parar para desembarcar. Nossos corpos se tocaram. Quando o trem freou, o contato ficou mais próximo, ele quase tocou meu pescoço com os lábios e inspirou profundamente. Fiquei excitada, mas não tive coragem de olhar para ele. Desembarcou rápido sem olhar para trás. Segui minha viagem, cheguei ao hotel, tomei um banho e fiquei sentada pensando no homem misterioso. Levantei, coloquei uma roupa e desci até o bar. Precisava de uma dose dupla.

Marcelo contava o caso com muita naturalidade, falava rápido sem permitir apartes.

Ela continuou seu relato.

– Sentei no balcão, pedi um uísque duplo e me deixei envolver pelo piano ao fundo que estava tocando “As time goes by”. De repente, uma rosa apareceu na minha frente sobre o balcão, um inspirar próximo ao pescoço e uma voz cantando baixo os últimos versos da canção “The world will always welcome lovers / As time goes by”.

Marcelo agora dramatizava o relato com a voz embargada.

– Marcelo eu te amei muito e também sei do seu amor, mas só quero te dizer que eu estou indo embora.

A mesa era um silêncio profundo, prevendo um desfecho trágico.

Quando Marcelo terminou, pegou a rosa, girou-a para um lado e para outro e a colocou de volta sobre a mesa. Deitou a cabeça ao lado da rosa e desmanchou em prantos.

.oOo.

Mogli Veiga, engenheiro e aventureiro.


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