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14 de junho de 2017
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10:00

Solidão

Por
Sul 21
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Mogli Veiga

José estava debruçado em sua janela tomando um mate. Lá fora a chuva continuava a castigar a vida. Estava literalmente ilhado.

O mar contornava a casa e não era possível distinguir onde terminava o lago e começava a ilha. Olhava o contorno da cidade do outro lado do lago e não conseguia distinguir os prédios, a imagem era difusa em meio à chuva.

Foto: Rodrigo Azevedo

A solidão que estampava em seu rosto, o acompanhava desde que deixou sua cidade e veio para a capital tentar a vida.

Havia sido demitido do emprego de porteiro noturno de um condomínio na capital, num prédio voltado para o lago. Como não tinha carteira assinada, prática comum nesse tipo de trabalho, não tinha direito a nenhum recebimento, apenas os dias trabalhados, mas só iria receber depois de ser substituído por outro empregado. Assim lhe disse seu patrão.

José continuou imóvel diante da janela, olhando o lago e tudo que descia levado para correnteza. Olhou para um lado e viu a vida que tinha passado. Olhou para o outro e viu a vida que estava por chegar.

José vivia com sua esposa que trabalhava num posto de saúde próximo à sua casa, mas também vinha faltando ao trabalho pelo mesmo motivo, a chuva.

Eram dois estranhos dividindo o mesmo espaço. José trabalhava à noite e sua mulher durante o dia. Quando um chegava o outro saía. Nos finais de semana faziam algum bico para complementar a renda. Quase não conversavam, apenas tratavam das questões rotineiras da casa. Isto para José era uma tortura, pois adorava uma conversa comprida. Lembrava o tempo de namorados no interior, quando passavam noites e noites conversando sentados na calçada, defronte de casa mateando. Depois, quando vieram para a capital este ritual foi diminuindo, secando, até desaparecer.

Nestes tempos de isolamento, suas palavras eram apenas: “está faltando isso, acabou aquilo”… As respostas eram sempre as mesmas: “quando parar a chuva vou providenciar”. “Não tem mais dinheiro, você tem que dar um jeito…”. José para não perder a paciência, apenas olhava para ela e ficava mudo.

Lembrou-se de uma conversa com a Dona Ivone, uma moradora do prédio onde ele trabalhava. Ela era do interior e por coincidência, de uma cidade próxima à sua. Veio morar com o filho, pois sendo uma viúva idosa, tinha medo de algo ruim acontecer.

Ela acordava muito cedo e descia para a portaria para matear com José. Ficavam horas conversando como dois velhos conhecidos, apesar das reclamações dos outros moradores e do seu patrão. Um dia D. Ivone o encontrou chorando. Ao ser interrogado, disse que havia sido mal tratado por uma moradora, chegando às raias da humilhação. D. Ivone o confortou e disse para ele chorar, chorar bastante. Só assim podia acalmar seu coração.

José, em meios aos soluços disse: “Dona Ivone vou lhe contar uma história. Quando era pequeno, lá na minha terra, tinha apelido de chorão, pois tanto os momentos de alegria quanto os de tristeza me faziam desmanchar em lágrimas. Meu pai, homem simples do campo, dizia que homem que é homem não chora e, de maneira rude, me mandava parar, engolir o choro.”

“Quando meu pai não estava por perto, minha mãe pegava minha mão e acariciava dizendo que as pessoas não entendem que as lágrimas devem ser postas para fora. Quem chora para dentro, como meu pai exigia, deveria saber: as lágrimas expulsa o sangue do coração e, quando este acaba você morre.”

“Mas mãe, como pode a lágrima ficar no lugar do sangue? Ele sai por onde?”

“Não, ele não sai, vai se transformando em água. Quando o choro é de alegria, de satisfação, não há problema. Esses momentos são curtos e a lágrima não tem tempo de acabar com o sangue. Mas se a lágrima é de tristeza, deve-se tomar muito cuidado, reagir, levantar a cabeça e lembrar que haverá outros momentos iguais e não devemos deixar esse sentimento nos contaminar, se não a gente morre.”

“É meu filho, disse D. Ivone, isso é que chamam de depressão.”

José continuou: “então perguntei à minha mãe se era assim que as pessoas faziam quando queriam se matar? Não tive resposta”.

“A depressão mata”, disse D. Ivone.

Voltando à realidade, tomou o último mate e se levantou. Foi até o cubículo que chamava de quarto, calçou sua bota surrada de tantas caminhadas, o pala meio rasgadito e o chapéu de couro presente de um amigo, saindo sem dizer nada.

O dia seguinte amanheceu com sol e as águas começaram a baixar.

Na delegacia o investigador avisa: “Delegado, encontraram um corpo na estrada no rumo de Uruguaiana”.

“Ok, vamos lá conferir”.

Ao chegarem encontraram uma pequena aglomeração. Com pedidos de licença, aproximou-se do corpo caído num matagal ao lado da estrada, enrolado num pala. Um jovem repórter, empregado de uma rádio de grande audiência, abordou o delegado perguntando: “delegado vocês já sabem o que aconteceu?”.

“Você deve saber mais que nós, pois chegou antes.”

“Mas delegado o senhor é a polícia, responsável por este tipo de acontecimento.”

“Então, me dê licença para ver o tal acontecimento. Segura tua ansiedade.”

Aproximou-se da cena, olhou de um lado, olhou do outro, deu a volta e ficou pensativo.

“E aí delegado?” insistiu o repórter.

“Olha, é uma situação difícil, pois não há sinais de ferimento nem vestígios de sangue. Neste caso só há uma hipótese: ele morreu de solidão e o sangue virou água”.

.oOo.

Mogli Veiga, engenheiro e aventureiro, para o Sul21.


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