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20 de maio de 2017
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10:00

O Brasil também é cor-de-rosa e carvão

Por
Sul 21
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Mogli Veiga

O coronel Deocleciano Borges assomou o alpendre da casa grande, olhou o pátio à sua frente e ordenou seu capitão do mato.

– Reúna o povo e traga o prisioneiro.

– Sim meu coronel, é pra já.

Eu estava ali de passagem, apenas por uma noite e não contava assistir uma cena como aquela, já pela manhã.

O povo, isto é seus empregados foram chegando e formando uma roda em torno do tronco do centro do pátio.

Ao lado do coronel estava sua esposa – Quitéria – uma uruguaia, filha de espanhóis que o coronel trouxera de Montevidéu quando resolveu se estabelecer no lado brasileiro. Também estavam juntos os dois filhos do casal, além da mucama Rosa, cujo nome de batismo era Yejide. A mucama era escrava sexual e a mulher preferida do coronel. Quitéria não aceitava aquela situação e sempre descarregava sua ira nos outros empregados.

João, o capitão do mato trouxe o negro Benedito, puxado pelas correntes, e amarrou-o ao tronco. Este olhou para seus pares em silencio e chorou. Sabia da tristeza deles em ver essa cena, apesar de corriqueira.

Benedito, que recebeu o nome original de Abidugum, era um negro forro. Perdera a esposa após o segundo parto. Tinha um casal de filhos: Abiodum e Yejide. Apesar de forro, não tinha para onde ir e aceitou trabalhar em regime escravo para o coronel, que lhe pagava apenas com casa e comida. A ração de comida que recebia do coronel mal dava para ele, e ainda havia o filho. A menina, escrava na casa grande e não tinha essas dificuldades.

Um dia recebeu ordens de João para procurar uns borregos que haviam fugido. Encontrou-os, entretanto, um havia morrido durante a fuga. Benedito escondeu o animal e informou a João que um tinha extraviado. À noite, com o filho, foi comer o borrego cru, pois não podia acender um fogo que o denunciaria.

João não acreditou na história e ficou de tocaia, dando voz de prisão a Benedito quando este comia a carne com o filho. Trouxe o negro para a sede da fazenda e contou a história ao coronel.

– O senhor veja coronel, roubou e matou o borrego e ainda praticava um culto pagão junto com filho, comendo a carne crua.

João era um mulato, filho nascido de uma relação entre mãe negra e um alemão que passou pela região. Abandonado, passou a viver só com sua mãe. Já rapaz, foi pedir pouso e trabalho ao coronel. Este viu nele o homem ideal para ser seu capitão do mato. O anterior havia sido morto, a golpes de espada, quando defendia o coronel numa disputa por terras.

Por ser mulato e bastardo, não se sentaria à mesa da casa grande privando do convívio de Quitéria e os filhos, a sua família. Também não era de confiança dos negros escravos. Eles não aceitariam conviver com quem era encarregado de vigiá-los e puni-los.

Ouvido o relato do fato, o coronel condenou Benedito a receber chibatadas até que pedisse perdão ou morresse. O filho seria perdoado, pois ainda era pequeno. Tinha ainda que contar em voz alta cada golpe recebido. O negro não suportou os ferimentos e morreu olhando para o filho que fora obrigado a assistir a tudo.

Ficou gravado na sua memória de Abiodum, o olhar de súplica do pai, como um pedido para nunca esquecer aquela injustiça.

Foto: Filipe Castilhos/Sul21

Muitos anos depois, caminhando num parque na capital, percebi um jovem negro aproximar-se de um casal, também jovem, sentado num banco falando ao telefone. Ele para, mostra uma arma e pergunta ao casal:

– Como vocês se chamam?

O homem responde: Borges.

E a mulher: Quitéria.

Assustada ela suplicou:

– Leve tudo, mas não nos mate pelo amor de Deus!

O negro responde: – Seus pais me levaram tudo, vem fazendo isto há anos. Meu avô foi morto a chibatadas por um crime que não cometeu. Minha tia avó foi feita prostituta e abandonada à própria sorte. Meu pai morreu de sífilis na prisão depois de defender o homem branco. E você tem coragem de me pedir clemência? Eu também vou morrer, só não sei de susto, bala ou vício. Sinto muito, a morte de vocês é só uma parte dessa conta, ainda ficará faltando muito…

.oOo.

Mogli Veiga é engenheiro e aventureiro.


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