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19 de fevereiro de 2017
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09:30

Aventura de um militante, clandestino no Chile

Por
Sul 21
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Por Mogli Veiga

Nos idos de 1992, recebo uma ligação de uma amiga chilena que estava morando em Porto Alegre, dizendo que precisava conversar comigo e me pedir um favor. Sua voz era uma mistura de nervosismo e ansiedade. Combinamos um local para nos encontrarmos e conversar sobre o assunto. Na verdade, o favor era uma missão não muito fácil.

Tratava-se de retirar um militante político do Chile. Seu nome, ou melhor, codinome era Fabio. Era um ex-dirigente do MIR – Movimiento de Izquierda Revolucionaria, um movimento de resistência ao governo militar do Pinochet. O MIR utilizava, durante a ditadura, a prática de assaltos (expropriação) a bancos com o objetivo de financiar suas ações. Quando a ditadura terminou, o grupo, que vivia na clandestinidade, continuava com a mesma pratica e ele não concordava mais com isto. Então resolveu abandonar o grupo. Passou a ser, a partir dali, um “arquivo” vivo perseguido pelo Movimento e pelo governo, pois, para este algumas práticas eram consideradas crime. O desafio era retirá-lo do Chile e trazer ao Brasil e tentar um exílio via Acnur, agência da ONU para refugiados.

Pedi um tempo para pensar no assunto e consultar alguns contatos. A conclusão era que muito difícil atravessar a fronteira com a Argentina. Se ele conseguisse isto por sua própria conta, o resto era tranquilo. Comuniquei essa decisão à minha amiga e, como já estava de viagem marcada para o Chile, lhe disse que poderia marcar um encontro em Santiago e lhe comunicar a situação. Ela me pediu um tempo para contatar seu irmão, que era seu contato com o Fabio. Em seguida veio o retorno, ele topava nos encontrar em Santiago, só pedia um contato telefônico lá para marcarmos nossa entrevista. Isto era outro ponto dificílimo. Eu ia encontrar uma família amiga que vive no litoral, próximo a Valparaíso, cuja casa frequento desde 1988. Tudo acertado me fui ao Chile.

Durante a viagem estava apreensivo e conversava com minha companheira, como seria esse encontro e como meus amigos receberiam a notícia de passado seu telefone para um clandestino? Bem, esta ansiedade só seria resolvida quando chegasse lá.

Tivemos um atraso na viagem, entretanto, isto não prejudicaria a missão. Ao chegar à casa de meus amigos, a senhora me recebeu com um grande sorriso dizendo: – Seu amigo de Santiago já ligou duas vezes. Quando na segunda vez lhe disse que você não havia chegado ele desligou rápido e não disse nada. Acho que seu encontro não acontecerá. Ela, pela nossa relação havia entendido que algo se passava. Pedi-lhe todas as desculpas, pois não deveria comprometê-la. Ela sorriu mais uma vez dizendo: – Nós dois sabemos o que isto significa. Depois você me conta. Fiquei muito puto comigo mesmo. Não conseguiria cumprir o que fui fazer.

À noite, enquanto jatávamos, o telefone toca, minha amiga atende e me passa a ligação. Era Fabio. No inicio ele ficou reticente, o que era normal. Fez-me uma série de perguntas. Quando se sentiu seguro, perguntou onde era melhor local de Santiago para nos encontrarmos. Não dominava Santiago, marquei na praça que dá entrada ao cerro San Cristóbal, no bairro Bellavista, na hora do almoço para dali a dois dias. Passei minha descrição física da e como deveria estar vestido. Tudo certo a ansiedade ficou adiada em dois dias.

No dia aprazado, fomos para Santiago ao ponto de encontro. Como a situação era uma incógnita, instrui minha companheira para ficar afastada de mim, mas sempre alerta a qualquer movimento estranho, e fui para a posição combinada, junto a uma banca de jornal. Deveria ficar olhando as manchetes dos diários. Alguém chegaria e deveria tecer um comentário do tipo: a vida está muito difícil. Eu deveria dar a contrassenha: por supuesto.

Ele me olhou de cima a baixo e perguntou se eu estava de carro? Chamei minha companheira, pegamos o carro e subimos o cerro San Cristóbal. Como estava em um carro de duas portas, ele disse à minha companheira que queria ir sentado na frente. Talvez para pular em caso de necessidade. Mostrava-se tremendamente desconfiado. Quem éramos nós, será que estávamos sendo seguidos? Da mesma forma eu ficava pensando e se seus “inimigos” descobriram o encontro e estão esperando apenas a oportunidade para o ataque. No caminho não trocamos palavras, apenas perguntei até onde deveria ir e ele me respondeu secamente: – até o final. A apreensão de todos era grande. Quando chegamos ao final do caminho, paramos descemos, nos apresentamos e sentamos para conversar. Ele ainda não se sentia confortável e disse que eu havia marcado o pior lugar para ele. O local, por ser um ponto turístico estava sempre cheio de polícia. Ao constatar o equívoco, caímos na risada. Contei sobre a dificuldade em marcar outro lugar por não conhecer Santiago tão bem.

Disse que era quase impossível lhe ajudar a partir do Chile. As fronteiras ainda não estavam totalmente liberadas, fato que ele concordou. Iria tentar resolver esta parte e contataria minha amiga no Brasil sobre sua decisão. Ficamos tempo conversando, quase um monólogo onde ele me contou várias histórias. Eu era só ouvidos, pois estava tendo a oportunidade de conhecer ao vivo e a cores um personagem da resistência chilena. Reforçou muito suas discussões sobre abandonar os assaltos e tentar outra forma de sobreviver, trabalhar, qualquer coisa, porém seus companheiros não concordavam, pois não sabiam viver de outra maneira. Ficava ouvindo e tentando descobrir onde estava a contradição, de ambos os lados. Quando já escurecia ele pediu para leva-lo ao local onde estava hospedado, no bairro Francia, um bairro popular no sudoeste da cidade.

Depois de uma despedida muito emocional, estava terminada a missão e era hora de voltar ao Brasil. A noite já havia descido sobre Santiago e ver a silhueta tênue da Cordilheira dos Andes ao fundo me veio à cabeça o filme “Chove sobre Santiago”. A questão agora era chegar à fronteira a tempo de encontra-la aberta. Propus para dormirmos na subida da cordilheira e seguirmos viagem no dia seguinte. Minha companheira insistiu e conseguimos chegar a tempo. A noite era de lua cheia e nos brindou com uma travessia fantástica. O luar refletia nas montanhas nevadas e dava à noite uma claridade prateada.

Chegando de volta ao Brasil, relatei a viagem para minha amiga que havia solicitado o favor. Agora era aguardar o contato do Fabio. Passou uma semana, um mês e nada, quando ela me trouxe a resposta. Fabio havia desistido de vir para o Brasil, partiu para o sul, para uma zona de plantação de videiras e virou colono.

Poderia ver isto como uma frustração, mas prefiro pensar que talvez, quando eu esteja bebendo um vinho chileno, lembrar pode ser fruto de sua colheita.

Não precisa dizer que o título é uma referência ao livro do Gabriel Garcia Marques: As aventuras de Miguel Littín, clandestino no Chile.

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Mogli Veiga é engenheiro e aventureiro.


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