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17 de novembro de 2020
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17:06

Efeito Marielle: Uma nova utopia!

Por
Sul 21
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Efeito Marielle: Uma nova utopia!
Efeito Marielle: Uma nova utopia!
Foto: Luiza Castro/Sul21

Mauri Cruz (*)

Passado o primeiro turno das eleições, embora difícil, devemos tentar praticar um certo distanciamento. Olhar para trás, recordar de nossas avaliações antes do pleito e mirar o que realmente aconteceu. Eu me recordo das nossas reflexões e discussões no final do ano passado e início deste ano sobre se haveria ou não eleições e, se houvessem, qual seria o papel da disputa municipal no combate à ofensiva da extrema direita desde 2014. Surgiram muitas teorias. A maioria delas afirmavam a necessidade de as eleições municipais serem uma espécie de trincheira contra o fascismo, o pensamento autoritário, machista, racista, xenófobo e negacionistas que dominam as falas de Bolsonaro e seus seguidores. Mais que isso, que neste contexto tão adverso, muitas/os de nós afirmávamos que o mais importante era que as eleições deveriam ser um momento de fortalecimento da democracia e de construção de uma consciência social na defesa das nossas pautas.

Mas para isso ser possível, era preciso unir forças deixando os interesses partidários em secundo plano. Primeiro salvar a democracia, era o mantra. O motivo desta estratégia era, por um lado, o reconhecimento da força do pensamento autoritário e seu enraizamento em parte da sociedade brasileira com o beneplácito de setores da mídia, do sistema judiciário e dos setores neoliberais. Mas também o reconhecimento da força das ações de resistência e de sua capacidade para derrotar o fascismo e construir um outro tipo de sociedade. Em síntese, havia uma convicção de que a tarefa principal era derrotar o bolsonarismo e tudo o que ele representa. Esta convicção era tão forte que em várias cidades houve movimentos conscientes de diálogo com os chamados setores progressistas do PSB e do próprio MDB.

Mas a necessária unidade não era uma consequência natural e os riscos de divisão eram enormes. Sabendo disto, a militância dos movimentos sociais iniciou diálogos e uma pressão para que a unidade fosse possível e para que os programas a serem defendidos pelos partidos de esquerda fossem discutidos de forma ampla e aberta com os movimentos sociais e não somente entre as direções partidárias. Nas plenárias realizadas na busca desta necessária unidade inúmeras vezes foi verbalizado que a militância social não iria se dividir. Infelizmente, quando as eleições foram confirmadas, a maioria das lideranças partidárias tomaram outro caminho, e priorizaram estratégias no sentido da manutenção de suas bancadas. Infelizmente a unidade necessária não foi a tônica em muitas das cidades. Não há outra explicação para algumas escolhas feitas em São Paulo, Rio de Janeiro e mesmo aqui em Porto Alegre.

Mas o importante é que em várias cidades a militância entendeu os riscos e não se dividiu. Jogou-se de corpo e alma no processo eleitoral. Priorizou aquelas campanhas e candidaturas que melhor a representavam. O resultado todas e todos conhecemos. Haverá segundo turno com Boullos (PSOL) em São Paulo, Manuela (PCdoB) em Porto Alegre, Marilia Arraes (PT) em Recife, Edmilson (PSOL) em Belém, João Coser (PT) e Sarto (PDT) em Fortaleza.

São vitórias eleitorais e política que precisam ser comemoradas. Estar no segundo turno com as pautas do combate as desigualdades, a defesa do estado como promotor do bem-estar social de todas e todos, do combate ao racismo, a xenofobia e ao patriarcado é uma mudança importantíssima. É preciso reconhecer que o contexto era bastante adverso. Não seria fácil apresentar alternativas à esquerda num contexto tão complexo onde a onda dos discursos da extrema direita sentia-se tão à vontade de serem defendidos aos quatro cantos do país. Por isso, os resultados devem ser interpretados dentro desta avaliação e não dos nossos desejos. Não me parece correto um sentimento de derrota.

Aqui no RS perdemos eleições importantes por míseros 300 votos, como foi o caso de Alvorada em aliança com o PDT e PCdoB e em Viamão apoiando o próprio PDT. Mas vencemos em São Leopoldo e estamos no segundo turno em Caxias do Sul e Pelotas. As derrotas são tristes, mas, apesar disto, ter mobilizado milhares de pessoas em defesa das nossas agendas sociais encantando e mobilizando num cenário tão adverso precisa ser reconhecido como um importante avanço. Nacionalmente, em Porto Alegre, São Paulo, Belém e Vitória, por exemplo, estamos no segundo turno com chances reais de vitória. E, analisando as eleições anteriores em que nem fomos ao segundo turno estes resultados como uma primeira vitória a ser comemorada.

Mas, indiscutivelmente, a maior vitória foi o que chamo de efeito Marielle. É muito significativo a eleição de tantas mulheres negras e brancas para as câmaras de vereadores em todo país, numa onda afirmativa que se alimentou nos movimentos antirracistas, feministas e na memória do que significou o assassinato de Marielle. O fenômeno Marielle pode ser considerado como resultado da intuição da militância que compreendeu o verdadeiro significado de sua morte, seja porque, a crueldade desmascarou os interesses e a falta de limites dos inimigos das causas sociais. Mas também demonstrou que são as lutas em defesa destas causas as que realmente tem poder de incomodar o sistema e de transformá-lo.

Aqui há espaço para um importante aprendizado. Especialmente para a militância partidária. É preciso reconhecer que não foram em todas as cidades que os partidos de esquerda leram corretamente o potencial da conjuntura. E, esta dificuldade, acabou por enfraquecer o papel da ferramenta “partido” no processo de organização e de transformação social. Hoje, as pautas estratégicas estão ainda mais na dependência da capacidade dos movimentos sociais em pensar e propor, não só agendas temáticas, mas um outro tipo de sociedade. Urge que a ferramenta “partido” tenha capacidade de se reconstruir e voltar a produzir sinergia com os movimentos sociais. Que, quando à frente de governos, se dedique a proporcionar que a experiência de governo seja dos movimentos sociais e da sociedade como um todo, desmascarando o caráter elitista do estado. O recado das urnas é uma sinalização efetiva de que para derrotar Bolsonaro e as agendas neoliberais talvez precisemos de menos Lula/Ciro e de mais Marielles.

Em síntese, olhando para trás podemos declarar que saímos bem vitoriosas/os. Depois do primeiro turno os desafios não são maiores nem menores que antes. Bolsonaro saiu derrotado e enfraquecido. Mas o centro direita recuperou seu espaço institucional e rearticulou sua aliança com a mídia. Assim, eleger Boullos, Manu, Edmilson e Coser é tarefa fundamental. Já mudamos algumas “peças” no tabuleiro. E se aprendermos a construir a unidade dos partidos de esquerda entre si e destes como os movimentos sociais podemos encerrar este processo mais capazes e fortes do que entramos. E isso acende uma nova utopia. Marielle vive!

(*) Advogado socioambiental, professor de direito à cidade e mobilidade urbana, diretor executivo do Instituto IDhES, membro do Conselho Diretor do CAMP e da Diretoria Executiva da Abong, sócio e consultor da Usideias.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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