Colunas>Mauri Cruz
|
1 de julho de 2020
|
21:40

A pandemia: da esquizofrenia do governo brasileiro ao colapso no transporte coletivo

Por
Sul 21
[email protected]
A pandemia: da esquizofrenia do governo brasileiro ao colapso no transporte coletivo
A pandemia: da esquizofrenia do governo brasileiro ao colapso no transporte coletivo
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil.

Mauri Cruz (*)

A forma como a maioria dos governos nacionais decidiu enfrentar a pandemia do coronavírus não deixou de ser surpreendente. Num mundo capitalista, com uma agenda neoliberal que não valoriza a vida, as pessoas e o meio ambiente, vimos governos liberais e até conservadores não hesitarem em fechar suas economias, financiar suas sociedades e ampliar os investimentos públicos para salvar vidas. Com isso, países como China, Alemanha, Inglaterra conseguiram rapidamente conter a onda de contágio e controlar a propagação do vírus em seus territórios. Mesmo países como Espanha, Itália e França que tiveram maiores dificuldades de iniciar isolamento por pressão dos empresários locais, assim que o aumento de infectados e de mortes foram sendo detectados, decidiram bloquear todas as atividades econômicas e sociais para preservar a vida de suas/seus cidadãs/ãos.

Mesmo aqui no Brasil, os primeiros 45 dias foram de um esforço nacional liderado pelo ex-ministro da saúde com apoio do Congresso Nacional, dos governadores, prefeitos e com adesão da quase totalidade da sociedade brasileira. Organizada através dos mecanismos e das ferramentas de gestão do Sistema Único de Saúde, os órgãos de controle e de vigilância sanitária foram mapeando os casos, identificando gargalos da capacidade dos serviços de testagem, disponibilidade de leitos comuns e de leitos de terapia intensiva e montando um Plano Emergencial de caráter nacional para o enfrentamento da pandemia. Com isso, foram propostas medidas de compra e testagem em massa, aquisição de equipamentos e instalação de hospitais de campanha e a elaboração de um orçamento nacional de emergência que foi aprovado no Congresso Nacional.

Estas medidas foram acompanhadas de outras iniciativas lideradas pelo Congresso Nacional, desde a garantia de uma renda emergência para milhões de trabalhadoras e trabalhadores informais ou sem renda para possibilitar o isolamento com proteção social, até medidas de socorro e financiamento dos mais variados setores da economia com a possibilidade de suspensão dos contratos de trabalho sem perda da remuneração ou mesmo linhas de crédito subsidiada garantidas pelo orçamento extraordinário. Com isso, o país retardou a velocidade de contágio e, de alguma forma, conseguiu implementar as ações necessárias para enfrentar de forma técnica e correta a pandemia. Tudo isso no começo.

Mas havia um desgoverno no caminho. Bolsonaro e sua irracional leitura da vida brasileira, viu na inesperada unidade nacional contra o coronavírus uma ameaça a sua guerra contra os interesses do povo brasileiro. E, rapidamente, começou a minar a legitimidade destas estratégias com declarações equivocadas, participação em atos antidemocrático provocando aglomerações, menosprezo das medidas de proteção individuais e de isolamento, desautorização de seus ministros e propagação de fake news chegando ao absurdo de “ministrar” remédios que teriam a capacidade de prevenir o Covid-19.

Como as estratégias de isolamento e de proteção social estavam surtindo efeito havia, na maioria dos estados e cidades, um efetivo controle da pandemia com baixos índices de contágio e de mortes. Este quadro, aliado a dificuldade real de significativa parcela das populações das periferias em praticar o isolamento social e aos interesses econômicos de parcela do empresariado, foram gerando uma natural pressão pela flexibilização e reabertura das atividades econômicas.

Sabendo da gravidade da pandemia, mas, por outro lado, tendo que administrar a forte pressão liderada pelo Governo Federal, os/as governadores/as e prefeitos/as acabaram por ceder a pressão e, em vários estados, criaram uma equação criativa com bandeiras coloridas resultados da combinação de alguns indicadores como velocidade de contágio, número de leitos disponíveis e percentual de UTIs ocupadas pelo Covid-19.

Esta flexibilização implodiu a capacidade de gestão da pandemia por parte do estado brasileiro. Implosão que foi agravada pela total ausência de coordenação do Ministério da Saúde – que a esta altura já havia substituído dois ministros da saúde – na gestão da compra de insumos, remédios, equipamentos de proteção para as/os profissionais, de respiradores e na montagem dos hospitais de campanha. Soma-se a isto, o descaso da equipe econômica com as dificuldades de milhões de brasileiros no acesso a renda emergencial, das pequenas e médias empresas ao acesso às linhas de créditos prometidas, aos inúmeros casos de desvios de recursos públicos facilitados pela flexibilização da lei de licitações e a baixa execução do orçamento especial de autorizado pelo Congresso Nacional.

O novo contexto acabou resultando numa lógica de sanfona, num constante abre e fecha de atividades de acordo com a leitura e interpretação dos indicadores e suas bandeiras. Pior que isso, como cada gestor/a municipal ou governador/a acabou por estabelecendo seus próprios critérios gerando políticas ineficazes no combate a pandemia com o absurdo de cidades conturbadas definirem medidas distintas que, por óbvio, não possuem qualquer chance de darem certo porque o vírus não respeita limites territoriais, muito menos institucionais.

A esquizofrenia e irresponsabilidade do Governo Federal e o bate-cabeça de estados e municípios, representa uma péssima sinalização para a sociedade sobre quais medidas devem ser tomadas, induzindo as pessoas a menosprezarem a gravidade da pandemia e a boicotarem a única estratégia eficaz que é o isolamento com proteção social. Resultado disto tudo é que o Brasil já contabiliza 60 mil mortes, mais de 1,4 milhões de pessoas infectadas e a projeção das organizações sociais que compõe o Conselho Nacional de Saúde é que, mantido o atual quadro, estamos longe de chegar ao pico da pandemia.

A última bomba anunciada é o colapso dos sistemas de transporte coletivos na maioria das cidades brasileiras. Com a flexibilização e abertura das atividades econômicas a demanda pelos serviços de transportes coletivos cresceu. No entanto, os protocolos definidos pelos órgãos públicos limitam a 50% de ocupação dentro dos veículos, além da obrigatoriedade do uso de máscaras e do distanciamento de um metro nos pontos de embarques. Para garantir esta lotação, a oferta de viagens deve ser igual ou até maior do que as tabelas de horários dos dias normais. Só que, esta oferta, é bastante distinta da demanda que oscila entre 30 a 55%. Com isso há uma enorme queda das receitas sem a respectiva queda nos custos. O colapso é uma questão de tempo. E de pouco tempo.

Pessoalmente, acredito que a forma correta de combate da pandemia é com medidas sistêmicas coordenadas pelo Sistema Nacional de Saúde do qual faz parte o Conselho Nacional de Saúde instância que reúne todos os segmentos públicos, privados, das universidades e dos usuários. É preciso realizar nacionalmente e de forma coordenada a testagem em massa com o isolamento das pessoas detectadas com o vírus. Revogar a Emenda Constitucional 95 e liberar recursos para o financiamento das áreas da saúde e assistência social, fortalecendo a rede de atenção básica do SUS, porte de entrada de todas as doenças. Da mesma forma, garantir um isolamento com proteção social radical pelo período mínimo de 60 (sessenta) dias, período que permite não ficar a mercê de uma queda eventual de casos decorrente de um isolamento curto, de quinze ou trinta dias.

Somada a uma campanha nacional de conscientização ao isolamento social voluntário é necessário a suspensão dos serviços de transporte coletivo como forma de restringir a circulação das pessoas e de garantir o equilíbrio econômico e financeiro dos próprios sistemas públicos de transportes. Para viabilizar o acesso das/os trabalhadoras/es dos serviços essencial como indústrias de alimentos, reciclagem e o acesso ao comércio de primeira necessidade como mercados e farmácias, deve-se criar uma rede emergencial de transportes com linhas e horários adequados a demanda em tempo de pandemia. Esse serviço essencial pode ser subsidiado com recursos públicos federais ou mesmo estaduais e municipais.

Aliás, a dificuldade de negociação no Congresso Nacional sobre o adiamento das eleições municipais está na falta de acordo entre Governo Federal e prefeitas/os sobre a destinação de 5 bilhões de reais a serem repassados aos municípios. Outra fonte de recursos para financiar a rede emergencial de transportes pode ser a autorização legislativa para o uso das receitas das multas de trânsito ou mesmo de parte dos recursos do FUNDEB para subsidiar este serviço de transporte emergencial em tempos de pandemia.

Finalmente, é preciso reconhecer que vários países tiveram êxito gestão e no combate aos efeitos sanitários, sociais e econômicos da pandemia. O Brasil, por ser um dos últimos países a ter que enfrentar o coronavírus, teve tempo para observar o comportamento do vírus e se preparar para sua chegada. Não fosse o desgoverno do Presidente Bolsonaro certamente poderíamos ter enfrentado esta crise sanitária de outra forma. Agora, ou mudamos a política radicalmente ou devemos nos preparar para conviver por um longo período com o vírus e seus efeitos nas vidas de nossos entes queridos, na profunda crise social e econômica. Mas para que isso seja possível, devo repetir minha afirmação de artigo anterior igualmente publicado aqui no Sul21: o impedimento de Bolsonaro é uma medida sanitária que se impõe. Não temos outra saída. Fora Bolsonaro.

(*) Advogado socioambiental, especialista em direitos humanos, diretor executiva do Instituto IDhES, membro do Conselho Diretor do CAMP e da Diretoria Executiva da Abong.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora