Colunas>Mauri Cruz
|
9 de maio de 2018
|
12:34

FSM 2018 – um câmbio geracional de pessoas e movimentos

Por
Sul 21
[email protected]
FSM 2018 – um câmbio geracional de pessoas e movimentos
FSM 2018 – um câmbio geracional de pessoas e movimentos
FSM 2018, realizado em Salvador, teve mais de 2.100 atividades. Foto: Reprodução/Facebook FSM

Mauri Cruz (*)

Os eventos dos Fóruns Sociais Mundiais são sempre muito complexos. Há um longo processo de organização e auto-organização que perpassa os coletivos locais que sediam o evento, mas que também mobilizam redes internacionais e nacionais que trazem para dentro dos Fóruns suas próprias atividades, dinâmicas organizativas, mobilização e lutas. Creio que o FSM só funciona por causa desta sinergia entre os coletivos locais e as redes e movimentos nacionais e internacionais que aproveitam a oportunidade de se reunirem com outros movimentos articulando seus próprios processos já existentes. Talvez por isso, os desafios metodológicos dos Fóruns Sociais tenham sido de, a partir desta oportunidade de reunião de milhares de organizações num mesmo tempo e espaço, criar mecanismos que possam possibilitar as trocas e construções de estratégias e agendas comuns capazes de ampliar o acúmulo de forças das esquerdas na luta anticapitalista e anti-neoliberal. Em função disto, é correto dizer que cada Fórum Social cumpre seu papel a sua maneira e de acordo com os momentos políticos de cada rede e movimento.

Dito isso, podemos afirmar que compreender o que foi e/ou está sendo o FSM 2018 – Resistir é Criar, Resistir é Transformar – só é possível a partir do processamento de tudo o que aconteceu. Isto porque nenhum de nós teve a oportunidade de estar nas mais de 2.100 atividades, nem de acompanhar todos os processo de construção de todas as coisas que ocorreram no FSM de Salvador.

Para aquelas e aqueles que participaram da sua organização, é possível refletir que, como processo, o FSM 2018 foi bem complexo e conflituoso. Alguns setores históricos ao FSM realizaram uma verdadeira campanha contra a sua realização alegando ser um momento inadequado e um lugar inoportuno de realizá-lo. Talvez por isso, setores importantes do próprio Conselho Internacional não se envolveram na sua construção. Apesar disto e, para a alegria nossa, o FSM 2018 aconteceu com uma participação massiva e significativa, não só brasileira, como internacional.

Um dos motivos deste sucesso foram as inovações metodológicas. A Assembleia Mundial de Mulheres sendo realizada no durante o FSM, colocou o protagonismo da agenda feminista e das lutas das mulheres no centro do evento o que acabou por contribuir, não sem problemas e dificuldades, pela retomada de uma articulação mundial mais ampla daquelas que estavam sendo viáveis em edições anteriores do FSM. Este acúmulo de articulação também pode ser observado em relação as articulações das juventudes que se fizeram muito presentes em toda sua diversidade, cores e matizes políticas. Foi um FSM jovem. Muito provavelmente por sua intima relação com a Universidade Federal da Bahia, a presença das juventudes com suas agendas culturais, sua rebeldia criativa e agendas inovadoras, contaminou o FSM de Salvador de uma forma maravilhosa com muita energia e vitalidade. As causas indígenas também se fizeram presentes de forma afirmativa e com uma grande articulação com as agendas ambientais que, de forma bastante expressiva, demarcaram sua presença com várias atividades.

Para entender um FSM é preciso ver e interpretar as entre linhas. Nem tudo é dito. Há muito do vivido. Muitas das organizações e movimentos sociais nunca havia participado da organização de um Fórum Social e, apesar disto, a Carta de Princípios foi constantemente evocada para resolver questões metodológicas, políticas e operacionais. As ideias da autonomia e da autogestão foram elementos sempre presente em todos os momentos do processo. A preocupação de um possível aparelhamento por parte dos órgãos públicos nunca chegou a ser ao menos uma possibilidade, quanto mais um risco concreto para a autonomia do evento. Esta experiência fortaleceu o caráter autônomo e autogestionário dos processos dos Fóruns Sociais Mundiais. A propalada falta de objetividade e de sentido político dos Fóruns foi respondida com mobilização, afirmação das agendas dos direitos, da democracia e da paz. Da reação imediata ao brutal assassinato de Marielle a defesa da democracia demarcada pelo direito de Lula ser candidato estiveram na pauta do FSM.

Por ser um evento em Salvador havia uma enorme expectativa sobre a dimensão das lutas dos povos negros, de matriz africana, dos povos tradicionais e das religiões de matriz africanas. Isso tudo aconteceu e com a realização de muitas atividades de grande expressão em vários espaços e momentos do FSM 2018. No entanto, aparentemente, apesar da forte presença de delegações do Continente Africano, a tão sonhada unidade mundial em torno da diáspora africana foi adiada para um próximo momento. Isto não faz menor a realização do FSM de Salvador. Apenas reforça que os Fóruns Sociais não tem o poder de mudar automaticamente a conjuntura das lutas. Por isso a importância do investimento nos processos e não apenas nos eventos.

É fundamental ressaltar, também, que fizemos um grande evento com poucos recursos. O apoio internacional foi praticamente inexistente, visto que recebemos apoio apenas da agência de cooperação alemã, Pão Para o Mundo (PPM) e da CESE. Os maiores apoios foram dados pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) com a disponibilização do espaço físico e um importante apoio operacional e pelo Governo da Bahia com a contratação dos serviços de infraestrutura, passagens internacionais e nacionais, tradução e apoio para as atividades de cultura e da economia solidária. De resto, quem sustentou o FSM de Salvador foram as próprias organizações do Grupo Facilitador com sua dedicação militante e todas as pessoas participantes através do pagamento das taxas de inscrições.

Na minha ótica, a principal característica do FSM de Salvador foi a inovação do perfil dos participantes. Foi visível um cambio geracional, onde uma grande parcela de pessoas e organizações responsáveis pelo FSM não haviam participado de eventos semelhantes nas outras edições. Este fator não é menor, num contexto em que as agendas da esquerda tradicional não tem tido a capacidade de mobilizar as novas gerações para as lutas anticapitalistas. É preciso reconhecer que um outro Fórum Social é necessário num contexto de profundas mudanças na dinâmica de acumulação capitalista, na desestruturação dos estados democráticos nacionais, nas mudanças no mundo do trabalho e de seus sujeitos e protagonistas. Não é menor a expressão maciça de movimentos sociais ligados as causas ambientais, das mulheres e dos feminismos, das lutas urbanas, das causas indígenas, das juventudes e das causas dos povos de matriz africana. Causas que, anteriormente eram relegadas a um segundo plano e que hoje estão ocupando lugar de centralidade na luta anti-sistêmica.

Outra questão importante é que, como sugerido pelo lema resistir é criar, resistir é transformar, boa parte das agendas trazidas para o debate tinham muito a ver com as novas práticas e projetos de outro mundo possível que estão sendo construídas no dia-a-dia das redes e movimentos. As trocas de vivencias deste outro mundo possível tem um poder de transformação porque demonstra, não apenas pelas teorias, mas principalmente pelas práticas, que é possível construir uma outra forma de vida diferente do capitalismo que mata e oprime bilhões de seres humanos.

Finalmente, é preciso reconhecer que o FSM segue com seus limites e contradições. Uma das contradições é a dinâmica do Conselho Internacional. Apesar dos processos do FSM serem autogestionados, autônomos e abertos a livre adesão, a dinâmica do Conselho Internacional tem seguido um caminho diverso. É um espaço relativamente fechado para poucas redes e movimentos escolhidos por quem já está no próprio processo o que guarda pouca relação com as dinâmicas vivas dos Fóruns Sociais que ocorrem pelo mundo. Outra grande dificuldade é o funcionamento da Secretaria que não consegue criar uma dinâmica de funcionamento do Conselho Internacional e de acúmulos dos encaminhamentos e acordos. Sem apoio para funcionar, a Secretaria tem estado relegada a quase paralisia pela falta de suporte político, operacional e financeiro.

Neste sentido, o FSM de Salvador também deu sua contribuição visto que foi encaminhada a constituição de um grupo de apoio a Secretaria que segue sediada no Marrocos composto por organizações de todos os Continentes. Este grupo de apoio operacional terá a tarefa de buscar alternativas para o (1) financiamento da Secretaria, (2) as tarefas de comunicação, (3) as tarefas de articulação política internacional e (4) as tarefas de sistematização e memória dos processos do FSM.

Outra decisão reiterada em Salvador, foi a inclusão de representação dos Coletivos Organizadores dos Fóruns Sociais na composição do Conselho Internacional. Esta decisão ocorrida na reunião do CI-FSM de 2016 em Montreal/Canadá, amplia e fortalece o CI a partir da inclusão dos processos vivos de organização dos Fóruns Sociais pelo mundo. Estas decisões, em conjunto, podem contribuir e muito para a retomada da dinâmica de articulação mundial que o FSM possuía nos primeiros anos de sua existência.

Dito isso, é possível afirmar que o FSM seque sendo um farol para a construção de um outro mundo possível, urgente e necessário. Sua existência, reforça cada luta específica por terra, moradia digna, saúde, pela proteção ao meio ambiente, pelos direitos sociais e políticos de todas e todos, pela soberania alimentar, pelo direito das cidades, pelos direitos sexuais e reprodutivos de todas e todos, pela dignidade humana e a defesa da vida. Da mesma forma, sua existência indica para a possibilidade real da gestão dos bens e interesses coletivos de forma horizontal e autogestionada através de uma sociedade civil ativa, autônoma e organizada. É assim que temos feito há quase 20 anos. É assim que devemos seguir fazendo.

(*) Advogado socioambiental com especialização em direitos humanos. Professor de pós graduação em direito a cidade, Mobilidade urbana e gestão de organizações sociais. Membro da Diretoria Executiva da Abong e do Conselho Internacional do FSM.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora