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10 de janeiro de 2020
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19:41

As palavras no jornalismo

Por
Sul 21
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As palavras no jornalismo
As palavras no jornalismo
“O jornalismo não é poesia nem ciência, mas produz um tipo específico de conhecimento” (Reprodução)

Marcos Rolim (*)

Os sentidos repousam nas palavras. É preciso acordá-los para que as palavras saiam pelo mundo e se encontrem com outras para a comunicação e a produção do conhecimento. Cada palavra possui uma cota de sentidos, contra o que se insurge a poesia. Em um verso, é como se as palavras tivessem enlouquecido. Na verdade, não se trata da loucura, mas da música. Ler poesia é aceitar uma dança proposta, onde novos sentidos são produzidos pelo enlace extraordinário das palavras. Não se trata da loucura, mas da sensibilidade. Observem, por exemplo, o poema “Catar Feijão” de João Cabral de Melo Neto:

Catar feijão se limita com escrever:
Jogam-se os grãos na água do alguidar
E as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo;
pois catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco,
o de que, entre os grãos pesados, entre
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco.

Aqui, o genial poeta pernambucano escolhe comparar o catar feijão ao catar palavras. Duas ações que não guardam relação de pertinência e, na qual, uma delas, “catar palavras”, já é metáfora. Grão leve e oco de feijão boia, mas todas as palavras “boiam” na folha – nenhuma delas fica ao fundo, porque não há fundo. João Cabral mantém a metáfora designando a folha de papel pela expressão “água congelada”, superfície plana e fixa da água. Há, entretanto, outras diferenças, sendo a mais significativa aquela que envolve o “grão de pedra”, aquele que é imastigável, e a “palavra de pedra”, aquela que dá à frase seu “grão mais vivo” e que barra a leitura “fluviante, flutual” (leve, líquida), açulando a atenção, capturando-a. Temos, então, que as frases possuem grãos, que alguns estão mais vivos que outros e que há tipos descompromissados de leituras que importa interromper; tudo isso em quatro versos mágicos.

O jornalismo não é poesia nem ciência, mas produz um tipo específico de conhecimento, ou não é. Seu objeto é a singularidade, como nos ensinou Adelmo Genro Filho, cuja unidade é o fato, e sua maior possibilidade reside na produção de sentidos verdadeiros a respeito desse fato. Não há jornalismo neutro ou definido “pela técnica”, porque fatos são, como as palavras, “catados”. Quando selecionamos um fato objeto de matéria jornalística, tirando-o do infinito dos fatos mudos, operamos nossa escala de valores, acionamos nossa sensibilidade ou a falta dela, manifestamos nossa (in) consciência política, etc. Catar fatos significativos é o ofício do jornalismo, assim como encontrar as palavras precisas para descrevê-los e despertar os sentidos dessas palavras. Uma matéria que desconsidere os fatos, que se afaste deles ou que os distorça até torná-los irreconhecíveis não é jornalismo, é fake news, terraplanismo, negacionismo, pilantragem.

Algumas palavras, a depender do seu contexto, comunicam mais; há as mais específicas e as genéricas, as mais leves e as mais densas. Algumas carregam sínteses, são, portanto, pesadas; outras são “flutuais”. “Ditadura”, por exemplo, é uma palavra pesada, imastigável. No jornalismo que se pratica no Brasil essa palavra é usada para designar, quase sempre, os regimes da Coreia do Norte, de Cuba e Venezuela. Estranhamente, ela nunca é usada para designar os governos da China e da Arábia Saudita. A razão dessa diferença não é “ideológica”, é apenas decorrência da avassaladora submissão do jornalismo brasileiro aos interesses dos seus anunciantes que fazem muitos negócios com os chineses (Brasil tem saldo comercial com a China de US$ 21,45 bilhões) e que não possuem qualquer interesse em se dispor com o governo saudita, tradicional aliado dos EUA e que anuncia investimentos de 10 bilhões de dólares no Brasil.

Assim, não parece relevante o fato de que há milhões de pessoas presas preventivamente na China em “campos de reeducação”, grande parte delas muçulmanas, submetidas à doutrinação para mudança de convicções religiosas e políticas e obrigadas a decorar canções de propaganda do Partido Comunista Chinês; assim como não há exasperações na mídia brasileira quanto ao fato de que a China é o país que mais executa prisioneiros no mundo, que Liu Xiaobo, prêmio Nobel da Paz, tenha morrido em custódia, que milhares de ativistas de Direitos Humanos sejam presos com base em acusações como “subverter o poder do Estado” e “provocar discórdia e criar tumulto” como assinala o Informe  mundial da Anistia Internacional.  Na Arábia Saudita, há uma monarquia absoluta  que manda matar seus adversários, que executa pessoas por “crimes” como bruxaria e adultério, que construiu um verdadeiro apartheid para as mulheres, que proíbe qualquer crença além da religião oficial islâmica, não tolerando sequer a existência da minoria xiita.  Recentemente, Jair Bolsonaro esteve na China e na Arábia Saudita.  Na China, declarou que estava em “um país capitalista”. Quanto à Arábia, afirmou que tinha “certa afinidade” com o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman. A frase do presidente foi: “Acho que todo mundo gostaria de passar uma tarde com um príncipe, principalmente vocês, mulheres. Vou ter essa oportunidade hoje. Nós dois temos certa afinidade”. Há um enigma nessa frase, mas não vou comentá-lo. O fato é que o príncipe é internacionalmente suspeito de ter ordenado o assassinato de Jamal Khashoggijornalista do Washington Post; a própria CIA chegou a essa conclusão.

 “Traficante” e “bandido” são outras palavras pesadas. Jornalistas não deveriam utilizá-las quando reportam a prisão de suspeitos. Quem produz a prova é a polícia, mas quem diz se essa prova presta – se é grão ou palha – é a Justiça, não a Polícia. Corriqueiramente, entretanto, pessoas suspeitas são apontadas pela imprensa como “bandidos” e “traficantes”. Os exemplos são muitos. No G1 desta sexta (10), há uma matéria cuja manchete é: “Chefe do tráfico de comunidades de Belford Roxo, no RJ, é preso em MaceióDe acordo com a polícia, ele vinha expandindo atuação no tráfico de drogas para Pernambuco e Alagoas”.  Na matéria, há a foto do suspeito e seu nome completo. O mesmo G1, entretanto, em matéria de outubro do ano passado, escreveu: “Estudante de medicina é preso com 100 cápsulas de cocaína em ônibus”. A matéria não apresenta foto do preso, nem revela seu nome.  Temos aqui outra regra não escrita do jornalismo brasileiro: pobres suspeitos são “bandidos”, ricos suspeitos são….suspeitos.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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