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12 de abril de 2019
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21:30

Crônica manicomial

Por
Sul 21
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Crônica manicomial
Crônica manicomial
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Marcos Rolim (*)

Para Polônio, a loucura de Hamlet revelava um método. Há quem veja método nas ações de Bolsonaro, mas o que há é loucura só. Entenda-se o termo aqui como um recurso literário a refletir o que não cabe nos conceitos correntes para incapacidade crônica, ignorância abissal, alienação persistente do mundo e inclinação patológica pela morte. Tudo o que essas características preparam para o futuro do Brasil será traduzido em sofrimento, porque essa é a natureza da loucura no poder. É preciso saber do que se trata, sem a reprodução de fórmulas ideológicas. Há uma dimensão necessária de desvario em todos os projetos de redenção, em todas as mitologias político-ideológicas, em todos os discursos populistas. Bolsonaro, entretanto, situa-se além desses discursos. Ele é a representação mais coerente de todos os passados; dos passados que nunca passaram no Brasil, que estiveram sempre ali, como disposição violenta e miséria cultural, na ânsia pelo açoite no calabouço do morro do Castelo, na água fervente que vertia dos apartamentos cariocas sobre os moradores de rua, nas ratazanas que circulavam no presídio Evaristo de Moraes, na revolta da vacina, na demolição do Palácio Monroe, na “Casa da Morte” de Petrópolis.

O governo Bolsonaro é uma contradição em termos, porque governar, seja qual for a direção que se pretenda, pressupõe projeto e racionalidade. O vazio de ideias e projetos paralisa o governo na fenda das disputas internas pelo Poder onde olavistas, militares, liberais, políticos de 4º escalão, os filhos do presidente, fundamentalistas religiosos e uma plêiade de incompetentes e lunáticos se engalfinham. O quadro é tão desastroso que são os militares que passam a encarnar a reserva de bom senso, ainda que dentro do hospício, o que é outro sintoma da exaustão do modelo político brasileiro. Sem saber o que fazer, Bolsonaro vai desconstituindo o que foi feito, enquanto o mercado e a mídia aguardam pela aprovação da reforma da Previdência, preservando-se os interesses do rentismo para o qual nunca houve governo na história do Brasil.

Muito dificilmente o Congresso aprovará a reforma da Previdência proposta pelo governo. A tendência é que uma reforma diluída seja aprovada, sem que se resolvam os problemas reais da própria Previdência, muito menos os da economia. Se este for o desfecho, as expectativas quanto ao governo, de parte do próprio mercado, serão nulas. O problema é que o Brasil terá, pela frente, mais de três anos de internação manicomial. Com 14 milhões de desempregados, filhos do capitalismo parasitário que por aqui se pratica; com famílias negras sendo alvejadas com 80 tiros, com todos os silêncios dos defensores da família, da lei e da ordem; com toda a apatia que nos adoece; com a desilusão pelo mundo, a ideação suicida e as armas de Suzano; com a lama de Brumadinho e as lives do presidente no Facebook? Será possível que o País suporte tanto? Improvável. O que há, então, é uma grave crise em curso, cujo desfecho poderá conduzir o general Mourão ao poder. Olavo de Carvalho sabe disso, Bolsonaro também. Por isso, o astrólogo xinga os militares e o presidente se cala.

Já seria muito, mas os problemas do Brasil não se resumem à ausência de governo. Eles estão fortemente instalados também na oposição. Uma pergunta sintetiza o tamanho da encrenca: O que propõe a oposição? A resposta, em termos de política pública, é um deserto, o que, assinale-se, não caracteriza fenômeno novo. Faz tempo que os partidos de esquerda não propõem caminhos e não mobilizam em torno de alternativas políticas. O discurso da esquerda sob a hegemonia do lulismo é, centralmente, uma narrativa de vitimização que a aprisiona.

Independentemente do que há de verdade e de mistificação nesse discurso (e há mistificação e verdade), o fato é que ele conduziu a esquerda para dentro de uma cela. Dentro desse espaço, não se fala em corrupção, porque isso demanda a autocrítica radical nunca realizada. É mais simples e operante apresentar a Lava Jato como um projeto da CIA e tratar o Poder Judiciário, o Ministério Público, o Congresso, a Mídia e todas as instituições como marionetes do capital e chocadeiras do fascismo. Nessa narrativa, a corrupção não é, inclusive, um problema real como ensina Jessé Souza.

O efeito político mais importante desse discurso é uma verdadeira façanha: a entrega da bandeira da luta contra a corrupção nas mãos da extrema-direita. Trata-se de uma derrota estratégica que subtrai da esquerda a legitimidade de fala.

Sem equacionar esse problema, sem realizar um balanço público a respeito dos seus erros e sem solucionar conceitualmente sua relação com a democracia, a esquerda continuará na companhia dos seus fantasmas; alguns deles bem assustadores como Maduro, Ortega e Kim Jong Un. Por isso, aliás, o bolsonarismo já em crise segue selecionando a esquerda como seu sparring. Na verdade, Bolsonaro depende desse adversário e jamais teria chegado aonde chegou sem ele. Ironicamente, a estratégia eleitoral do PT apostou nessa mesma polarização, imaginando que Bolsonaro seria o adversário ideal no 2º turno (uma expectativa que foi refletida, à época, nas análises de Breno Altman e Paulo Henrique Amorim, veja aqui).

A esquerda brasileira precisaria se reinventar, mas é – para dizer o menos – improvável imaginar que o PT realize um aggiornamento aos moldes do antigo Partido Comunista Italiano (PCI), por exemplo, dando por encerrada uma fase histórica e projetando novos valores e símbolos para uma esquerda contemporânea aos desafios da complexidade. O problema maior, entretanto, nem é o conservadorismo do lulismo, mas o fato desse fenômeno ter se transformado no principal inibidor para o surgimento de uma alternativa progressista e renovadora. É comum que lideranças progressistas não subordinadas à narrativa da esquerda tradicional sejam tratadas como inimigas a serem derrotadas. Foi assim com Marina nas eleições de 2014 e com Ciro em 2018. Recentemente, a jovem deputada Tabata Amaral (PDT-SP), em audiência pública com o então ministro da Educação, se pronunciou de forma respeitosa e justa, cobrando do Sr. Ricardo Vélez dados, projetos e metas, ao invés de desejos (veja aqui). Ela disse que não iria debater “fumaça ideológica”, mas que queria discutir a capacitação técnica do titular e de seus assessores. Foi o que bastou para que um pequeno exército de internautas alegadamente “de esquerda” passasse a atacá-la. Tabata, suprema acusação, não seria “verdadeiramente de esquerda”, uma construção que assinala fumaça muito apreciada por uma tradição narcísica e intolerante que, aliás, sente-se mais à vontade com sonhos do que com dados, projetos e metas. Nenhum fascista soube o que dizer contra Tabata naquele dia. Nem precisou.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)

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