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28 de dezembro de 2018
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20:44

As palavras e a máquina de eco

Por
Sul 21
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As palavras e a máquina de eco
As palavras e a máquina de eco
“O governo Bolsonaro deverá oferecer expressivas contribuições para a novilíngua”. (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Marcos Rolim (*)

Dentro da máquina de eco, aqueles que repetem os mantras não percebem que relativizar a corrupção ou situá-la como um fenômeno  natural é uma ação determinada que só produz um resultado: o fortalecimento do discurso da extrema-direita.

 Há algo acontecendo com as palavras faz tempo. Há algo extremamente grave ocorrendo com as palavras que, em muitas situações, afirmam exatamente o oposto daquilo que é. O sujeito diz “A” diante de um claro e insofismável “B” e a vida segue como se B passasse a ser A, porque assim foi decretado. O que me faz lembrar de Alice no País das Maravilhas e da passagem onde Humpty Dumpty assinala: “Quando uso uma palavra, ela significa exatamente aquilo que quero que signifique, nem mais, nem menos”. “A questão”, sustentou Alice, “é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes”. “A questão”, replicou Humpty Dumpty, “é saber quem manda. É só isso”.

O general Braga Netto, comandante da intervenção federal no Rio de Janeiro, declarou nesta quinta-feira (27) que “a intervenção foi plenamente exitosa e que atingiu todos os objetivos propostos”. Trata-se de mais um sintoma sobre o que está ocorrendo com as palavras. Nos dez meses de intervenção, o número de tiroteios no Rio cresceu 56%, o número de pessoas mortas em ações policiais aumentou 40%, os homicídios seguem em um patamar escandaloso de 3.747 casos, houve 53 chacinas e 103 agentes de segurança foram mortos. As polícias não passaram por qualquer reforma; as milícias – tão ou mais perigosas que as fações que atuam no tráfico – não foram sequer tocadas; os responsáveis pela execução da vereadora Marielle Franco seguem impunes e tudo leva a crer que a corrupção na polícia seja um dos motivos pelos quais as investigações não avançam.

O governo Federal disponibilizou 1,2 bilhão de reais para serem gastos na intervenção. Os gênios fardados que a administraram conseguiram empenhar 60% desse montante e, até ontem, apenas 6% do orçamento havia sido gasto efetivamente (Observatório da Intervenção – CESEC). E, então, diante desse quadro, a síntese oferecida ao público é a de que a intervenção foi “plenamente exitosa e que atingiu todos os seus objetivos”? O general Braga Netto deveria ser indicado para a Academia Brasileira de Letras, não pela obra literária, mas pela disposição revolucionária de recriar a língua portuguesa.

O governo Bolsonaro insere-se nesse movimento pela desconstrução dos sentidos e deverá oferecer expressivas contribuições para a novilíngua. Aqui a aposta será mais radical e, seguramente, o trânsito não se resumirá à gramática. Todo movimento político começa por seus símbolos. O Bolsonarismo passará à história como um movimento cujo símbolo maior foi um gesto infantil repetido por adultos, simulando o disparo de uma arma de fogo. O gesto insinua uma distopia na qual os problemas são resolvidos abatendo-se aqueles que lhes deram causa. Que uma mensagem dessa natureza tenha cativado corações e mentes de um país que se diz cristão é coisa que deve dar motivo para reflexões mais exigentes.

Para essas reflexões, será preciso recuperar os sentidos das palavras. Não contem com o lulismo para esse desafio. Ele é parte do problema, não da solução. Para seu mais destacado ideólogo, Jessé Souza, o bolsonarismo é filho do casamento entre a Rede Globo e a Lava Jato. O sociólogo interpreta que o Poder Judiciário e a mídia convenceram a classe média da necessidade de fazer uma “limpeza social”. Ao jornal Folha de São Paulo, Jessé afirmou que “a Lava Jato e a TV Globo, ao criminalizarem e estigmatizarem a Petrobrás, de quem o estado do Rio inteiro e parte do Brasil dependiam, são as causadoras da debacle”.

Aqui a esquerda se junta à babel moderna e propõe que a realidade seja simplesmente ignorada. Pelo raciocínio de Jessé, o que quebrou o Rio de Janeiro não foram as ações de picaretas de todos os matizes ideológicos, desde Garotinho, Moreira Franco e Eduardo Cunha, até Cabral e Pezão. Não foram os projetos votados pela Assembleia sobre o comando dos Piccianis, as isenções fiscais, as obras superfaturadas, os mensalões para autoridades de todos os poderes, a aliança criminosa com as milícias, etc.  Não, tudo o que essa malta de velhacos fez, com a participação e o apoio entusiasta de Lula e do PT, teriam sido apenas traquinagens inofensivas. O problema real estaria nas investigações da Lava Jato e na Rede Globo que dramatizou os crimes expostos, assinale-se, com toneladas de provas. Jessé, é claro, não comenta sobre as graves crises fiscais vividas por outros estados, como o RS e MG, onde não há qualquer elemento significativo como a crise da Petrobrás a ser considerado.

Também não está preocupado com isso. Seu objetivo é fornecer elementos ao lulismo para a criação de um novo idioma. Ganha uma passagem para Manágua, Caracas ou Pyongyang quem identificar uma única repercussão positiva para o Brasil em se reduzir a importância da corrupção como um fenômeno social que corrói o Estado e a sociedade.

É curioso que a esquerda tenha construído para si uma máquina de eco no interior da qual cada discurso se legitime apenas e tão somente pelo fato de ser uma insistente repetição. Qualquer frase fora da máquina, qualquer pensamento que questione os pressupostos do discurso oficial, são imediatamente estigmatizados. Dentro da máquina de eco, aqueles que repetem os mantras não percebem que relativizar a corrupção ou situá-la como um fenômeno natural é uma ação determinada que só produz um resultado: o fortalecimento do discurso da extrema-direita. 2019 começará assim, do mesmo jeito como chegamos até ele.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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