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30 de novembro de 2018
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09:24

Sobre o nacionalismo e o alerta de Harari

Por
Sul 21
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Yuval Noah Harari (Reprodução/Youtube)

Marcos Rolim (*)

O tema do nacionalismo merece uma reflexão cuidadosa. Tradicionalmente, as visões nacionalistas caracterizam as perspectivas político-ideológicas conservadoras. As visões mais extremadas do nacionalismo, aliás, embalaram o fenômeno totalitário nas versões do fascismo e do nazismo.  Nem sempre, entretanto, o nacionalismo foi uma característica da direita. No período stalinista, o regime operou uma ruptura com um dos princípios da tradição marxista, conhecido como “Internacionalismo proletário”. Stálin alimentou os ideais da “Grande Rússia” e chegou a desenvolver a teoria do “Socialismo em um só país”, uma empulhação ideológica que amparou toda sorte de posturas oportunistas como o Pacto Molotov-Ribbentrop, um acordo de não agressão germano–soviético que foi, na verdade, um pacto pela rapina da Polônia e de outras nações, firmado em 1939 e só rompido em 1941. Há muitos outros exemplos como a dinastia comunista na Coréia do Norte que desenvolveu um nacionalismo delirante. Regimes assemelhados também caracterizaram outras ditaduras de esquerda como a Albânia de Enver Hoxha e a Romênia de Ceauşescu.

No Brasil e em muitos outros países, as posições de esquerda perderam ou nunca constituíram perspectivas nacionalistas virtuosas; vale dizer projetos nacionais com vocação universalista, capazes de dialogar amplamente com o conjunto da sociedade em torno de metas e desafios comuns, por sobre todos os interesses particulares, a começar pelas corporações sindicais. Nos últimos anos, a onda conservadora manipulou os sentimentos nacionais, procurando e até certo ponto conseguindo se adonar dos seus símbolos. Sem um projeto nacional, a esquerda foi construindo um discurso cada vez mais particularista, com acenos genéricos a uma idade mitológica onde todos foram felizes e com a repetição das plataformas identitárias. Nada contra as demandas identitárias. Elas têm produzido mudanças cruciais e, enquanto houver racismo, misoginia, homofobia, entre outras patologias sociais, seguirão sendo muito importantes, independentemente do que pensam os partidos. O problema é quando o discurso político se reduz a essas plataformas. Nessa hipótese, temos uma tendência à fragmentação e uma crescente incapacidade de falar para aqueles que não estão representados. No caso do Brasil, como já assinalei em outros textos, a ausência de um discurso propositivo da esquerda sobre os temas da corrupção e da segurança pública foram as lacunas mais sérias e nada indica que passarão a ser enfrentadas.

Pois bem, as diferentes perspectivas nacionalistas não estão radicadas na psique, nem em nossa estrutura genética. São, pelo contrário, complexas expressões culturais do mundo moderno. Os humanos desenvolvem muito facilmente noções de lealdade a pequenos grupos e essa capacidade está radicada em seus genes. Trata-se de um resultado de milhões de anos de vida de nossos ancestrais hominídeos em tribos com algumas dezenas de pessoas. A ideia de que devemos ser leais e mesmo disponíveis para o sacrifício em nome de uma “Pátria/Nação”, o que pressupõe a identificação com milhões de seres que não conhecemos, é algo, entretanto, muito distinto; uma novidade na história da humanidade que só se tornou possível por investimentos enormes em educação, comunicação, desenvolvimento de ideologias e mitos fundantes, além da estruturação de instituições e de uma narrativa que passou a acompanhar o discurso político. Uma novidade positiva, assinale-se. Com a ideia de Pátria/Nação, estendemos o círculo de solidariedade e a noção de dever, nos tornamos menos autocentrados e mais propensos à construção da cidadania, do respeito pelo público, etc.

O professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, Yuval Noah Harari, um dos cientistas sociais mais interessantes da atualidade, sustenta esse entendimento em “21 lições para o século XXI” (Cia das Letras, 441 pag.), mas chama a atenção para dois problemas. Primeiro, se é verdade que há um nacionalismo benigno, sem o qual não existiriam as nações modernas, há também um nacionalismo chauvinista que se constrói a partir do momento em que assumimos que não temos responsabilidades relevantes com mais ninguém além do meu país. Quando imaginamos que nossa nação é “superior” às demais e que seus interesses devem prevalecer, independente do mal que possamos produzir para a vida das pessoas no resto do mundo, então colocamos o país em um caminho que o levará, inevitavelmente, ao isolamento político e, no limite, à guerra. Não por acaso, a insígnia da Alemanha nazista foi  Deutschland über alles (A Alemanha acima de tudo) que é o primeiro verso da canção nacionalista Das Lied der Deutschen (A canção dos alemães) que se transformou em uma espécie de hino para os seguidores de Hitler. Segundo, Harari chama a atenção para o fato inconteste de que os maiores problemas enfrentados em cada país estão associados a problemas mundiais e que não há uma solução nacional possível para as três maiores ameaças sobre o mundo: a hecatombe nuclear, a crise ambiental e a disrupção tecnológica.

Desde o final da Guerra Fria, o tema da guerra nuclear deixou de figurar entre as principais preocupações públicas. O mundo esteve mais ameaçado pelo uso da energia nuclear, como se viu na tragédia de Tchernóbil, do que pela guerra (a propósito, para se entender as dimensões do que ocorreu lá, deve-se ler o impressionante livro de Svetlana Alexievich Vozes de Tchernóbil: história de um desastre nuclear). Em 2016, anota Harari, apesar da guerra na Síria e na Ucrânia, e de outros focos de tensão, morreram mais pessoas por obesidade, em acidentes de trânsito e por suicídio do que por violência humana (OMS). Uma das construções mais importantes para a paz foi a União Europeia, mas a votação que aprovou o Brexit foi tomada em nome de perspectivas nacionalistas que conduzem também a política norte-americana de Trump e que se espalham com a onda conservadora pelo mundo. EUA e Rússia deflagraram nova corrida nuclear e tensões perigosas entre potências atômicas atualizam o risco de que uma das máquinas do juízo final seja acionada.

A crise ambiental, por seu lado, exige políticas mundiais para que possamos transitar rapidamente para uma nova matriz energética capaz de reduzir o processo de emissão de gases estufa e frear o aquecimento global. Nos EUA, Trump zomba do consenso científico sobre as mudanças climáticas e chegou ao absurdo de tarifar em 30% os painéis e equipamentos de energia solar de fabricação estrangeira. O Brasil  segue desmatando e sequer pautou determinados temas, como o significado de estimular a indústria da carne, uma das principais consumidoras de antibióticos e venenos e um dos empreendimentos mais poluidores. Para se ter uma ideia do impacto apenas dessa indústria, Harari lembra que são necessários 15 mil litros de água fresca para se produzir um quilo de carne bovina, contra 287 litros para se produzir um quilo de batatas.  O descompromisso com o tema marca todos os governos que o Brasil já teve, incluindo a experiência dos governos do PT com seus incentivos à indústria automobilística e monstruosidades como Belo Monte, mas a situação irá se agravar muito agora que temos um governo cujos ideólogos-astrólogos- pastores estão comprometidos com a demência “antiglobalista”, com a negação das evidências científicas sobre as mudanças climáticas e com a firme disposição de avançar com tratores e moto-serras sobre a Amazônia e as terras indígenas.

Por fim, o tema da disrupção tecnológica. Harari sustenta que a fusão da Tecnologia da Informação com a biotecnologia poderá trazer à humanidade um conjunto enorme de conquistas e, ao mesmo tempo, uma porta assustadora para cenários apocalípticos, que vão desde as ditaduras digitais até a criação de uma classe universal de seres humanos descartáveis, sem a menor chance de empregabilidade ao lado de seres sobre-humanos, formatados geneticamente para características muito além daquelas que foram selecionadas pela evolução. O encontro entre Inteligência Artificial e Bioengenharia colocará a humanidade diante de dilemas éticos inéditos que farão Frankenstein parecer uma história infantil.

O nacionalismo nada tem a dizer sobre esses temas, entre tantos outros como o terrorismo, por exemplo. Por isso, toda perspectiva nacional deve se projetar para uma política consertada na esfera internacional em seus fóruns mais autorizados como aqueles promovidos pelas Nações Unidas. Forúns que, assinale-se, são chamados de “comunistas” por esse versão perversa da família  Buscapé que venceu as eleições no Brasil. Nesse quadro, as posições doutrinárias sustentadas pela extrema-direita tendem a conduzir seus países a prejuízos inestimáveis, como se observa, agora, no Reino Unido com perdas econômicas estimadas em 100 bilhões de libras por ano ao até 2030 , enquanto empurram o mundo para as margens do abismo.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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