Colunas>Marcos Rolim
|
24 de novembro de 2018
|
11:15

Falácias sobre o crime

Por
Sul 21
[email protected]
Falácias sobre o crime
Falácias sobre o crime
Divulgação

Marcos Rolim (*)

Acaba de sair a 6ª edição de Crime & Everiday Life (“Crime e Vida Cotidiana), do casal de sociólogos americanos Marcus Felson e Mary Eckert, um dos estudos mais interessantes da Criminologia contemporânea, totalmente revisado, com novos temas e dados atualizados. Felson é professor na Universidade do Estado do Texas e é mundialmente reconhecido por ter desenvolvido a chamada “Abordagem da Atividade de Rotina” (Routine Activity Approach) e a aplicado nas avaliações sobre o crime, desde um texto seminal de 1979, em parceria L.E Cohen. Sua esposa Eckert é diretora de pesquisa da Agência de Justiça Criminal de Nova Iorque e professora adjunta nas Universidades de Nova Iorque, do Estado de Montclair e do Estado do Texas.

A abordagem inovadora de Felson é uma teoria de médio alcance, que não se dedica a temas de largo espectro como a etiologia do crime, por exemplo, mas que procura identificar como os delitos ocorrem, em que momentos eles são mais prováveis e em que locais, identificando, assim, padrões criminais. Essa ideia, aparentemente tão simples, mudou a forma de atuar das polícias modernas e permitiu, por exemplo, que gestores e policiais em todo o mundo passassem a lidar com conceitos como “hot spots” (“pontos quentes”, locais em cada cidade que concentram a prática de grande parte dos crimes) e “georreferenciamento criminal” (registro de ocorrências com o uso de software que permite a automática visualização dos delitos no mapa da cidade, distribuídos por tipos penais, horários e dias da semana), informações que comandam a alocação dos efetivos policiais, entre outras decisões decisivas na gestão moderna em Segurança.

A ideia central é que as atividades rotineiras na sociedade influenciam fortemente o tipo de ações que emergem na interação social e que mudanças nessas rotinas também alteram o tipo de situação que as pessoas enfrentam. As pesquisas demonstraram suficientemente que as pessoas agem em resposta a essas situações, o que se aplica também àquelas que cometem crimes. O modelo de prevenção situacional do crime está amparado nessas evidências ao afirmar que o crime ocorre na confluência de três fatores básicos: a) uma pessoa motivada a cometê-lo, b) um alvo adequado e c) uma circunstância favorável marcada pela ausência de vigilância (controle/supervisão).

O primeiro capítulo do livro chama-se “Oito Falácias Sobre o Crime”, um texto clássico que deveria ser parte dos currículos dos cursos de jornalismo em todo o mundo. O primeiro tipo de raciocínio falso que simula veracidade quanto ao crime eles chamam de “Falácia Dramática” (Dramatic Fallacy). A expressão dá conta do fenômeno pelo qual os eventos mais valorizados como notícia, aqueles que efetivamente são divulgados com destaque e que chamam a atenção do grande público, são obviamente os mais graves e, entre esses, aqueles cujas circunstâncias os fazem de alguma forma “render mais”; vale dizer: que despertam mais interesse. Como todas as notícias criminais dizem respeito a ocorrências dramáticas – invariavelmente envolvendo massacres, execuções e homicídios contra vítimas indefesas – as pessoas concluem que eles ocorrem com altíssima frequência e que todos podem ser alcançados por tragédias iguais. O problema é que os eventos noticiados são, exatamente, os menos comuns quando comparados com o conjunto de crimes praticados. Alguns deles são mesmo extraordinários e raros ainda que comparados apenas com todos os outros crimes violentos.

Felson e Eckert mostram que, nos EUA, ocorreram 17.250 homicídios em 2016.  No mesmo ano, as polícias registraram mais de um milhão de outros crimes violentos (1.248.185) e quase 8 milhões de crimes contra a propriedade, casos de furtos e roubos (7.919,035). O FBI Uniform Crime Reports de 2016 estima em dezenas de milhões os crimes que não redundaram em prisão e tudo isso representa apenas 42% dos crimes praticados naquele ano nos EUA, segundo o serviço nacional de pesquisas de vitimização mantido pelo país desde 1973 (National Crime Victim Survey). Esses dados mostram que a relação de crimes violentos para homicídios nos EUA é de 70 X 1 e que a relação de crimes contra a propriedade para homicídios é de 460 X 1.

Daqueles 17.250 homicídios, houve 11 casos de envenenamento, 1 caso de morte com explosivos, 9 pessoas foram afogadas e 9 foram estranguladas.  Aproximadamente 11 mil pessoas foram mortas com uso de armas de fogo, a grande maioria delas, armas comuns de mão como revólveres e pistolas, não rifles ou armas de uso militar. Mesmo se examinando apenas os homicídios, percebe-se que a maioria deles é o resultado de conflitos que começam de forma banal. Os autores mostram que dois fatores são fundamentais para a letalidade dos conflitos: uma arma de fogo próxima e um hospital distante.

A segunda falácia diz respeito à ideia de que a resposta adequada do Estado ao crime e da violência é a se colocar mais policiais nas ruas, aprovar leis penais mais duras e construir mais prisões. Os autores a chamam de Cops-and-Courts Fallacy (“Falácia dos Policiais e dos Tribunais”). Para ilustrar o tema, eles tomam o exemplo da cidade de Austin que possui 963 mil residentes e 2,6 mil policiais. Trata-de uma cidade super-policiada, com efetivos bem distribuídos e com o apoio dos melhores recursos de policiamento conhecidos. Os autores demonstram, entretanto, que seria preciso que cada policial trabalhasse 3.200 horas por dia para assegurar que todos os bairros fossem perfeitamente patrulhados, 24 horas. Ainda assim, os policiais não saberiam se alguém que está saindo de uma casa é um criminoso ou não. Policiais nas ruas são um recurso fundamental de segurança, especialmente quando eles atuam dentro de uma política racional e com focos determinados. Mas, a partir de um determinado número, apostar no aumento dos efetivos costuma ser totalmente ineficiente. “Dobrar o número de policiais em uma cidade americana é dobrar a lágrima em um balde”, afirmam (Doubling the number of police in a US city is doubling a drop in the bucking).

Os EUA são o país com a maior taxa de encarceramento do mundo (655/100 mil hab. No Brasil, a propósito, essa taxa é de 324/100 mil hab), conta com leis especialmente severas e com a maior quantidade de polícias de que já se teve notícia (a depender do critério sobre o que constitui uma polícia, o número de polícias autônomas nos EUA situa-se entre 20 e 40 mil instituições). Essa estrutura impressionante, cujos custos impressionam ainda mais, oferece, por certo, resultados importantes mas está longe de terminar com a impunidade. Em 2016, ocorreram 3,3 milhões arrombamentos nos EUA. Deste total, a metade dos fatos foi comunicada à polícia. Do total de registros, cerca de 10% resultaram em uma prisão. A estimativa é a de que 1% dos arrombamentos resultaram em condenação criminal. Dados do tipo são comuns para muitos outros crimes, mas não para os mais graves, com destaque para os homicídios cuja redução é assunto prioritário.

Temos muito a aprender com os EUA, assim como com muitos outros países do mundo, inclusive na América Latina. A lição mais importante, entretanto, talvez seja: enquanto permitirmos que a agenda pública em Segurança seja constituída por falácias, colecionaremos fracassos com cada vez maior avidez e orgulho.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora