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16 de novembro de 2018
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23:28

A agenda regressiva em Segurança

Por
Sul 21
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A agenda regressiva em Segurança
A agenda regressiva em Segurança
(Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Marcos Rolim (*)

O Brasil precisa estruturar um Sistema Único de Segurança Pública que funcione efetivamente. Isso não ocorrerá se depender apenas da Lei 13.675 de junho de 2018 que, a par das suas limitações, assinalou um passo à frente. Se não houver uma estrutura específica vocacionada a garantir que a União seja protagonista em um amplo processo de reformas na área, a Lei será apenas uma declaração de intenções destinada a adornar os discursos dos gestores. Alberto Koppitke tem sustentado em nome do Instituto Cidade Segura essa preocupação (veja aqui: https://goo.gl/Efhoxu ).Quando falamos em estrutura específica, nos referimos à necessidade de construir uma arquitetura institucional adequada que conte, pelo menos, com:

  1. Um Ministério de Segurança Pública,
  2. Uma Escola Nacional de Formação de Gestores em Segurança e de Lideranças Policiais,
  3. Um Centro Nacional de Pesquisas em Segurança e
  4. Uma Inspetoria Nacional Autônoma.

O Ministério seria o centro desta arquitetura, contando com dotação orçamentária própria e equipe altamente qualificada capaz de produzir políticas públicas eficientes na área e induzir reformas nos estados e nos municípios que tornem possível a intervenção racional e sistêmica, desde a prevenção aos fatores de risco para o crime e à violência, até à repressão qualificada, com foco nos crimes dolosos contra a vida (homicídios, latrocínios, feminicídios e lesões corporais seguidas de morte) e crimes sexuais.  A Escola cumpriria o papel decisivo de formação de uma nova geração de lideranças policiais, educada para o policiamento com base em evidências (policing evidence-based), capazes, portanto de conceber e dirigir projetos nas unidades da federação a partir do conhecimento oferecido pelas Ciências, com destaque para a Criminologia contemporânea.

O Centro Nacional de Pesquisas em Segurança, formado a exemplo do Instituto de Segurança Pública – ISP do RJ, centralizaria os indicadores a respeito do crime e da violência, realizaria pesquisas sistemáticas de vitimização em todo o País e concentraria os esforços de avaliação das políticas públicas em curso, recolhendo evidências sobre o que funciona e o que não funciona.  Com essa abordagem, teríamos a identificação de boas práticas e, ao mesmo tempo, recomendações aos gestores sobre caminhos a serem evitados. A Inspetoria Nacional Autônoma seria uma instituição formada com a missão de acompanhar a qualidade do trabalho policial, atuando fortemente como Correição de modo a excluir das polícias os bandidos que nelas se infiltraram e que, em alguns estados, como no RJ, deram origem a organizações mafiosas como milícias e grupos de extermínio e constituem séria ameaça aos bons policiais.

A arquitetura nacional necessária para uma “virada” na área da Segurança é apenas o solo sobre o qual se deveria erguer uma ampla agenda de modernização na área, começando pela reforma de nosso modelo de polícia, assegurando-se o ciclo completo de policiamento a todas as instituições (o que exigirá novas definições sobre os mandatos policiais, por exemplo, que cada uma das polícias estaduais lide com tipos criminais distintos) e uma única carreira funcional em cada instituição policial, para mencionar apenas dois pontos que caracterizam todas as polícias modernas, exceção feita ao nosso modelo de policiamento que remonta ao Império.

Nada disso está na agenda do presidente eleito que não contará sequer com um Ministério específico para a Segurança.  Incrivelmente, o que temos assistido no Brasil, desde o processo eleitoral, é a proposição de um “debate” a respeito da necessidade e da legitimidade dos policiais terem “autorização para matar” (a chamada “exclusão de ilicitude”) ou de se matar suspeitos que portem fuzis; inclusive, como o pretende o governador eleito no RJ, Wilson Witzel, de usar drones para tal missão.

Independente dos caminhos pelos quais a demagogia e a estupidez podem conduzir os políticos brasileiros, seria conveniente lembrar que a pretendida medida é flagrantemente inconstitucional e se opõe aos dispositivos constantes na Resolução 45/166, conhecida como: Princípios Básicos Sobre o Uso da Força e Armas de Fogo Pelos Funcionários Responsáveis Pela Aplicação da Lei, adotados por consenso no Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes. O artigo 9º dessa Resolução, a propósito, estabelece que:

Os responsáveis pela aplicação da lei não usarão armas de fogo contra pessoas, exceto em casos de legítima defesa própria ou de outrem contra ameaça iminente de morte ou ferimento grave; para impedir a perpetração de crime particularmente grave que envolva séria ameaça à vida; para efetuar a prisão de alguém que represente tal risco e resista à autoridade; ou para impedir a fuga de tal indivíduo, e isso apenas nos casos em que outros meios menos extremados revelem-se insuficientes para atingir tais objetivos. Em qualquer caso, o uso letal intencional de armas de fogo só poderá ser feito quando estritamente inevitável à proteção da vida.

Policiais devem disparar suas armas sempre que se tratar de salvar a vida de alguém e não houver outro recurso, o que inclui também a vida do próprio policial, diante de ameaça iminente de morte ou ferimento grave. Aqui está a excludente de ilicitude em termos operacionais – o que é muito mais preciso do que a formulação genérica do exercício da “legítima defesa de si ou de terceiros”. Ao estabelecer a única circunstância em que o uso da arma de fogo se reveste de legitimidade, a Resolução definiu um procedimento padrão que é a mais importante referência em todo o mundo quando se fala em emprego de armas de fogo por agentes encarregados de cumprir a Lei. Isto nada tem a ver com a “carta branca” para matar pretendida pelo presidente eleito ou com a obscura disposição de policiar favelas com drones assassinos.

Alguém poderá dizer que não se trata de medida voltada para as favelas e se deverá disparar em qualquer espaço onde alguém porte um fuzil.  Curioso, porque Bolsonaro quer que os produtores rurais tenham direito de comprar fuzis (veja aqui:> https://goo.gl/ZJEduu ). Facções criminais têm se utilizado de propriedades rurais para planejar ações, esconder armamento e montar laboratórios. Se produtores rurais tiverem autorização para comprar fuzis, vai ficar bem mais complicado para a polícia distinguir quem são os delinquentes, ainda mais se o recurso para o disparo for um drone.

Comentando as “ideias” de Witzel, Luiz Eduardo Soares pergunta: se o fuzil estiver ao lado de três pessoas, todas serão consideradas portadoras e deverão ser executadas? E se quem estiver portado o fuzil for uma criança de 10 anos obrigada por um traficante a levar o fuzil de um local a outro em uma comunidade? Se deverá atirar mesmo assim? E se o fuzil estiver no chão? Vale dizer: quem usa um fuzil pode se render?  Nesse caso, também será morto? E se o fuzil estiver sendo transportado em um carro? O motorista deve ser morto? Como saber se ele não sofreu grave ameaça para realizar o transporte?  As hipóteses são infinitas, para não falar no erro de disparar em alguém que manejava uma furadeira como ocorreu com um morador do Andaraí alvejado pelo BOPE .

Tudo isso, assinale-se, em um estado onde as polícias são responsáveis por 29% das mortes violentas! Ou seja, quase uma em cada três vítimas de homicídio no RJ é resultado de ação policial. Em São Paulo, com taxas de homicídio muito menores que o RJ, 20% das mortes são resultantes de intervenção policial.  Em 2017, o Brasil teve 5.012 pessoas mortas por policiais, um aumento de 19% comparado com 2016. Nesse número estão apenas os casos registrados como “mortos em confronto”, ou seja, mortos assumidos pelas polícias. Casos de chacinas que envolveram policiais não estão contabilizados. O número de policiais mortos segue também extremamente alto. Foram 385 os policiais assassinados em 2017, o que expressa redução de 15% no mesmo período. Dos 385 policiais mortos, 91 estavam no horário de serviço quando da ocorrência fatal e 294 foram mortos fora do horário de trabalho. O Rio de Janeiro é o estado onde mais as polícias matam e também o estado onde mais policiais são mortos.

O primeiro efeito da agenda que tem sido proposta pela irresponsabilidade reinante na área da Segurança será o aumento da letalidade da ação policial no Brasil, acompanhada pelo aumento no número de policiais mortos. Uma conta que não interessa a ninguém.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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