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10 de outubro de 2018
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17:20

O que iremos decidir

Por
Sul 21
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Foto: Joana Berwanger/Sul21

Marcos Rolim (*)

O primeiro esforço deve ser o de compreender, porque não há como agir corretamente se não compreendemos. Quando estamos diante de um fenômeno como aquele que ocorreu no primeiro turno das eleições, então, é preciso refletir muito. Nessa linha, o artigo de Eliane Brum “Como resistir em tempos brutos” (aqui: https://goo.gl/evm5qS) e a entrevista com Vladimir Safatle “Está explodindo uma bomba relógio que ninguém quis ver” (aqui: https://goo.gl/xtcejg) me parecem referências obrigatórias, independentemente do quanto se possa concordar com elas.

Neste e em outros espaços, tenho publicado sucessivos artigos a respeito de Bolsonaro, do neofascismo e daquilo que me parece, desde há muito, uma sistemática e perigosa subestimação da verdadeira ameaça em curso no Brasil. Dessa avaliação, concluí que a esquerda brasileira (e, destacadamente, por sua representatividade, o PT) deveria ter construído uma política de Frente Democrática com setores de centro-esquerda já no primeiro turno e que o candidato dessa unidade deveria ter sido Ciro Gomes (PDT), o que não se efetivou – aliás, sequer foi cogitado seriamente. No futuro, será preciso conhecer as razões que conduziram essas forças à fragmentação com tanta naturalidade.

O que chamo de compreensão, entretanto, se renova agora porque é preciso derrotar Bolsonaro e o nome selecionado para isso foi Fernando Haddad. No fenômeno da votação alcançada pela extrema-direita temos um evidente processo de hegemonia (como sustentei aqui: https://goo.gl/MUNk54) e uma complexidade que não pode ser varrida para o lado sob o mote do “vamo-que-vamo”.

O que há de racional na loucura

Para ilustrar uma parte do problema, sugiro que nos coloquemos na pele de um eleitor médio do Rio de Janeiro. Alguém com baixo interesse pela política como a grande maioria dos eleitores. Essa pessoa descobre, então, que os candidatos mais bem colocados nas pesquisas são Eduardo Paes (DEM), Garotinho (PRP) e Romário (Podemos). Paes, que a cada eleição se lança por um partido, foi muito ligado a Sérgio Cabral, que cumpre pena em Bangu e cujo total de condenações já somam 183 anos de prisão. Garotinho já foi condenado por improbidade e enriquecimento ilícito de terceiro, acusado de ter desviado 230 milhões da área da Saúde. Ambos são políticos tradicionais e cobras criadas. Romário não é isso, mas também não expressa qualquer renovação. Então, o eleitor médio vê que há um candidato novato chamado Wilson Witzel (PSC) e fica sabendo que ele foi juiz federal e que abandonou a magistratura para ser candidato. O slogan do cara é “mudando o Rio com juízo” e sua propaganda afirma que ele “deixou de ser excelência para se juntar ao povo”. Seu discurso é centrado no combate à corrupção e na promessa de não dar moleza aos bandidos. Diante desse quadro, qual você acha que deveria ser a resposta racional do eleitor? Como se viu, o eleitor médio apostou na candidatura que lhe pareceu a mais capaz de romper com a velha política, exatamente aquela que destruiu o Rio. Em outra vertente, essa mesma aposta apareceu na votação de Tarcísio Motta (PSOL), que só não foi ao 2º turno porque esquerda e centro-esquerda, para variar, não se uniram.

O exemplo ajuda a compreender porque não devemos atribuir a uma pretensa “vocação autoritária ou conservadora” a votação recebida por candidatos de extrema direita, inclusive por Bolsonaro. Entre seus eleitores há, claro, um núcleo efetivamente alinhado e que compartilha do que há de mais ameaçador no fascismo, mas a maioria dos que votaram nele tem pouco a ver com isso. É preciso lembrar que esse mesmo eleitorado deu quatro vezes a vitória a candidaturas presidenciais do PT. Examinando com mais cuidado os resultados do 1º turno, veremos que vários candidatos que se opuseram à tradição política alcançaram expressivas votações. A maior renovação se deu pela extrema direita, mas não é pouco, por exemplo, que o PSOL tenha eleito 11 deputados federais, que Joênia Wapichana (Rede), a primeira mulher indígena a exercer a advocacia do Brasil, tenha sido eleita em Roraima  e que um dos novos senadores do Espírito Santo seja Fabiano Contarato (Rede), um gay assumido, casado e pai adotivo de um menino negro. Se o Espírito Santo, o outro, está de acordo não se sabe, mas Fabiano derrotou o senador e pastor Magno Malta (PR), conhecido por sua homofobia e aliado histórico de Bolsonaro. Vai dizer que não tem jeito de castigo divino?

Sustento, por decorrência, que é possível que uma parte daqueles que votaram em Bolsonaro no 1º turno, mude seu voto no dia 28. Para que isso ocorra, entretanto, é preciso reduzir o antipetismo disseminado socialmente e que se construiu em parte pelos erros do PT, em parte por seus acertos. Não se fará isso apenas com um discurso correto – amplo o suficiente para atrair lideranças do campo democrático, respeitoso, centrado em propostas concretas, etc – mas sobretudo com símbolos.  O primeiro símbolo deve ser a própria “Frente pela Democracia”, como tradução de um novo sujeito político. A disputa no 2º turno não pode ser entre PT e Bolsonaro (esta disputa, aliás, só serve a Bolsonaro), mas entre a Frente pela Democracia e Bolsonaro, o que deve se materializar em uma nova síntese programática, uma nova identidade visual e uma nova postura. Se o PT fizer sua campanha repetindo o que disse até agora não haverá chance de derrotar o fascismo. Haddad tem o perfil adequado para afirmar um discurso renovado e para apresentar propostas claras sobre corrupção e segurança, pontos nevrálgicos dessas eleições.

O sequestro da política para a esfera privada

Ao início das eleições, se imaginava que o tempo de propaganda na TV seria decisivo para as pretensões dos candidatos, porque essa variável sempre teve papel central nas eleições brasileiras. O que ocorreu, entretanto, foi algo bem diverso. Na verdade, essas eleições foram as primeiras no Brasil onde a mídia tradicional foi, no fundamental, irrelevante. A formação da opinião política – e, particularmente, o apoio a Bolsonaro – se formou e consolidou nas redes sociais e a partir de ferramentas como o WhatsApp. Há, aqui, uma dificuldade nova, pois quando o debate político não existe e a formação da opinião pública não ocorre na esfera pública, não há a possibilidade do constrangimento exercido pelo melhor argumento e pelo contraditório e o que resta são bolhas adubadas com mentira e ódio.

Tudo leva a crer que o processo de divulgação de fake news e todos os demais recursos de manipulação de imagens empregados em favor de Bolsonaro correspondem a técnicas de influência digital muito sofisticadas. Não se sabe, efetivamente, qual a real infraestrutura montada pela extrema direita. É possível que as mesmas técnicas utilizadas na campanha de Trump tenham sido aplicadas no Brasil e que Steve Bannon, um articulador da extrema-direita americana, tenha prestado serviços à campanha de Bolsonaro. Bannon, para lembrar, foi o cara que contratou a Cambridge Analytica, empresa que lidou com os dados vazados do Facebook de milhões de pessoas, influindo fortemente nos resultados das eleições americanas e na vitória do Brexit, na Inglaterra (veja aqui: https://goo.gl/CtJ4z3 ).

As posições de Bolsonaro que nos transportam para uma mentalidade comum nos anos 30 parecem ser, paradoxalmente, articuladas por um conjunto de recursos da vanguarda tecnológica, muito superiores aqueles de domínio do ativismo político tradicional. Alguns dos vídeos produzidos para as redes por apoiadores de Bolsonaro lidam com recursos subliminares de propaganda desenvolvidos a partir de pesquisas comportamentais e de conhecimentos na área da Psicologia. Não são, em síntese, coisa de amadores.

O único extremo e o que está em jogo

Há quem insista que o 2º turno selecionou “duas posições extremas”, “dois radicalismos, um de direita, outro de esquerda” e que ambas as alternativas ameaçariam a democracia. Se a disputa fosse entre Bolsonaro e o PSTU, teríamos um contraste do tipo. O fato é que o PT não representa extremo algum e não há em todos os seus governos um único retrocesso democrático. O PT pode e deve ser criticado por um monte de coisas, mas é rigorosamente falsa a ideia de que ele seja um partido “radical” ou que não tenha, desde sua origem, respeitado a ordem democrática. É a experiência real de 14 anos no Governo Federal e de centenas de governos em estados e cidades ao longo dos últimos 36 anos que o confirmam. Uma experiência onde, aliás, os espaços democráticos foram alargados por práticas como o orçamento participativo, conferências temáticas, consultas públicas e fortalecimento dos mecanismos de participação popular e de controle social previstos pela Constituição Federal.

Há um só extremo no 2º turno: o neofascismo. Exatamente por isso, o que iremos decidir é o quanto de civilização restará no Brasil. Estamos lidando com um inimigo da democracia e de todos os valores da tradição liberal, a começar pelos Direitos Humanos e com um representante da herança de superstição, dogmatismo religioso e barbárie que carregamos desde a Idade Média. Não por acaso, contrapondo-se às evidências científicas, Bolsonaro anunciou que, se eleito, irá retirar o Brasil do Acordo Climático de Paris, o mais amplo a ambicioso compromisso já firmado no mundo, envolvendo 195 países, para reduzir a emissão de gases de efeito estufa e limitar o aquecimento global. É preciso derrotar Bolsonaro também para proteger a Amazônia da ação criminosa de grileiros, mineradores e madeireiros que irão derrubar a floresta com total desembaraço se tiverem uma motosserra no Palácio do Planalto ao invés de um presidente. Esse é mais um ponto em que as eleições brasileiras se conectam com o futuro do Planeta, vez que a Floresta Amazônica é uma das mais importantes fontes reguladoras do clima mundial.

O que iremos decidir no dia 28 é se haverá hordas de marombados marchando pelas ruas, com porretes e camisas com a estampa de Ustra, para caçar homossexuais, travestis, negros, nordestinos e ativistas. Quem achar que estou exagerando deve assistir aos vídeos com torcedores do Palmeiras cantando “O bicharada, toma cuidado, Bolsonaro vai matar veado” (aqui: https://goo.gl/ZwYjPH); conferir pelas redes o que muitos dos seus apoiadores dizem sobre os nordestinos; acompanhar as notícias de pessoas agredidas por apoiadores de Bolsonaro ao longo dessa semana como a menina em Porto Alegre cujos agressores riscaram uma suástica em sua barriga com um canivete (veja aqui: https://goo.gl/Nd7zNg) ou checar o macabro jogo “Bolsomito 2k18” disponibilizado na Steam, uma plataforma digital de jogos e aplicativos. O objetivo do jogo é matar petistas, gays e defensores dos direitos humanos. Uma das fases desse “jogo” ocorre numa escola e seu objetivo é matar homossexuais para “proteger” as crianças do “kit gay”.

O que iremos decidir no dia 28, em síntese, é se o Brasil fará uma aposta na vida ou na morte. Nunca decidimos sobre algo tão importante e urgente.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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