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4 de outubro de 2018
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19:02

O buraco negro

Por
Sul 21
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O buraco negro
O buraco negro
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Marcos Rolim (*)

Um conhecido que irá votar no Coiso me mandou pelo Whats um “argumento” em favor do seu candidato. O texto dizia: “- Bolsonaro pode não ser um bom fertilizante, mas será um ótimo pesticida”. – “Interessante a metáfora a favor dos pesticidas; poderia ser o Zyclon-B?”, respondi. Não sei se meu interlocutor tinha a referência do pesticida usado pelos nazistas em suas câmaras de gás. O fato é que a mensagem encerrou nossa conversa.

O evento simboliza o momento ao qual chegamos em que as posições políticas situadas ao centro, de perfil liberal, foram tragadas pelo buraco negro da intolerância. O que havia de moderação e possibilidade de diálogo foi destruído pela força gravitacional do nada superlativo. Buracos negros são configurações que atraem até mesmo a luz e que surgem da deformação da malha do espaço-tempo, causada pelo colapso gravitacional de uma estrela. No caso brasileiro, o espaço-tempo da política foi deformado radicalmente por dois grandes fenômenos: a) o descolamento da sociedade das instituições, sobretudo dos partidos políticos, por conta do avassalador envolvimento das principais legendas com a corrupção e b) o crime e a violência disseminados socialmente que degradam a qualidade de vida e promovem o medo, alimentando demanda punitiva crescente e sentimentos de vingança.

Há em curso um processo de afirmação de uma hegemonia nos termos concebidos por Gramsci, onde um sujeito histórico consegue que seus valores sejam legitimados e passem a dirigir os movimentos políticos de diferentes grupos sociais. Esse processo já se estabeleceu sobre os setores mais conservadores e sobre largas camadas da população que não são necessariamente “de direita”, mas que foram hegemonizadas pelo discurso neofascista cujo símbolo maior é a ideia de fuzilamento. Nesse ponto, já estamos diante de retrocesso extraordinário, capaz de nos conduzir a décadas de atraso e boçalidades.

No 2º turno das eleições presidenciais, especialmente se seu adversário for o candidato do PT, o neofascismo irá mobilizar todos os fantasmas, desde a ideia de que o Brasil está “à beira do comunismo e da venezuelização”, até a guerra santa contra uma pretensa estratégia para converter nossas crianças em objetos da “ditadura gay”. A estratégia envolve “a defesa da família”, o que significa excluir do conceito todas as formas de união que não aquelas ungidas pelos sacramentos; a “defesa da vida”, com o que se expressará o interdito ao aborto e a criminalização das mulheres, além das promessas de armamento geral para dar um fim à vida daqueles definidos como “vagabundos”.

Haverá uma versão “soft” desse discurso na propaganda eleitoral e uma versão “hard” nas redes sociais, estruturada, do começo ao fim, com base em fake news. Assim, na TV, se dirá que o PT quer o fim da família; nas redes, se dirá que Haddad distribuiu mamadeiras com bicos em forma de pênis para as crianças, para combater a homofobia (sério, essa mensagem de apoiadores do Coiso já circulou em vídeo no Facebook). Paralelamente à campanha institucional, padres e pastores medievais conclamarão seus rebanhos contra o “demônio vermelho”; empresários reacionários constrangerão seus funcionários e alguns cronistas, em claro processo de identificação, escreverão textos em favor de presidentes medíocres (49 anos depois, a empresa que publica textos assim pedirá desculpas por ter apoiado o fascismo).

O ideário do neofascismo brasileiro prevê o fim da laicidade do Estado (o Estado será cristão, já disse o Coiso); o estabelecimento do homeschooling, pelo que se autoriza as famílias a não matricularem suas crianças em escolas, imitação do retrocesso promovido pelos grupos fundamentalistas nos EUA que só admitem que seus filhos sejam educados a partir da Bíblia; a promoção da execução de suspeitos pobres por policiais; o estrangulamento das pretensões indígenas pela demarcação de suas terras; o aumento extraordinário do desmatamento da Amazônia de forma a agradar mineradores, grileiros e madeireiros; o afastamento de fato do Brasil do sistema das Nações Unidas com o correspondente desprestígio internacional; a completa submissão dos interesses nacionais aos EUA; a privatização selvagem das empresas estatais, incluindo os setores estratégicos para nossa soberania; a crescente militarização do Estado e um ataque sistemático aos direitos trabalhistas e às garantias individuais.

No centro de um buraco negro, tempo e espaço deixam de existir. O fascismo brasileiro nos conduzirá a esse não lugar e a esse não tempo, onde o Estado defende latifundiários que praticam trabalho escravo, onde a resistência das mulheres à violência e à discriminação é apontada como obra de “vadias” e onde torturadores ressuscitam em marchas e bandeiras. Imaginar um governo dessa natureza é um exercício distópico que equivale a projetar um pesadelo. O que se pode afirmar, sem qualquer dúvida, é que um projeto político de perfil neofascista é incompatível com a democracia, razão pela qual ou a democracia o derrota, ou ela própria será tragada por ele.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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