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21 de setembro de 2018
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18:39

A hipótese da deterioração e notas para a reforma política

Por
Sul 21
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A hipótese da deterioração e notas para a reforma política
A hipótese da deterioração e notas para a reforma política
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Marcos Rolim (*)

Diante das dimensões da crise política brasileira e tendo presente o grau de corrupção que estrutura nosso sistema político, é preciso tentar compreender por que temos, cada vez mais, representantes caricatos e/ou desonestos. A resposta que oferecermos deve orientar a natureza da reforma política necessária. Nesse texto, sustento a necessidade de cinco mudanças profundas no sistema eleitoral: voto em listas fechadas, financiamento cidadão, fim da reeleição, paridade de gênero no Parlamento e voto facultativo.

Na coluna da semana passada, afirmei que, a cada eleição parlamentar no Brasil, a densidade de políticos despreparados (intelectual e moralmente) se torna maior, o que, mesmo de formas distintas, termina por afetar todos os partidos. Ao contrário do que se costuma imaginar, há bons parlamentares em quase todas as agremiações. O fato inconteste é que eles compõem uma minoria cada vez menor. Uma observação adicional: o processo de perda de qualidade tem se radicalizado nas últimas eleições e imagino que essa tendência será confirmada quando conhecermos os eleitos para o Congresso Nacional no próximo 7 de outubro. Volto ao tema para tratá-lo com mais detalhe e para oferecer algumas sugestões para a reforma política

Se a hipótese da deterioração estiver correta, devemos nos perguntar sobre suas causas. Certamente, há vários fatores que concorrem para esse resultado, mas entendo que as dinâmicas causais mais importantes são subprodutos da legislação eleitoral pelas razões expostas a seguir.

Despolitização e voto pessoal

Quando o voto para o Parlamento é pessoal, os partidos formam suas listas observando, fundamentalmente, um critério: aglutinar o maior número possível de votos à legenda, porque é a soma desses votos que irá definir o número de cadeiras de cada Partido. Sendo esse o critério, os partidos precisam de candidatos “bons de voto”, ou seja: candidatos que possam transformar seu prestigio em apoio eleitoral. Por isso, os partidos procuram atrair “celebridades”, comunicadores, artistas, esportistas, humoristas, pastores, líderes empresariais, sindicais e comunitários, representantes de aspirações classistas ou regionais. Esses são, afinal, os perfis “mobilizadores” (considerando-se a capacidade de capturar votos). Exigências de natureza política ou ideológica, preocupações a respeito dos valores morais ou inquietações sobre a formação intelectual dos pretendentes estão simplesmente fora do modelo. Os partidos não estão obrigados a essa conduta, mas aqueles que agissem de outra forma – não aceitando candidatos com potencial eleitoral, mas sem preparo – teriam desvantagens competitivas.

No modelo de voto nominal, os candidatos ao Parlamento recebem votos de todos os tipos de eleitores, inclusive daqueles que possuem ojeriza por seu partido e que irão votar no principal oponente nas eleições majoritárias. Essa circunstância não acarretará constrangimento e muitos candidatos proporcionais irão, inclusive, estimular o voto em qualquer majoritário, contanto que os eleitores os brindem com sua “confiança pessoal”. Uma conduta ética e coerente aqui, que insistisse na identidade política com a plataforma do partido, agregaria nova desvantagem competitiva.

Nesse modelo, é absolutamente previsível que os candidatos mais carismáticos tenham enorme vantagem. O que já seria um problema considerável se torna mais grave quando percebemos que, com o voto nominal, quanto menor a densidade das definições políticas da campanha, maiores as chances eleitorais. Candidatos que se apresentam como representantes de interesses e que sintonizam seus discursos com as expectativas médias do eleitorado são muito mais competitivos. Com exceção de candidaturas que representam nichos onde determinadas opiniões contra-hegemônicas são valorizadas, as outras terão mais chances quanto menos claras forem suas opiniões sobre temas polêmicos. As generalidades e as posições ambíguas protegem os candidatos de desgastes eleitorais e cumprem o papel de desimpedir seu trânsito entre grupos de interesses contraditórios. As campanhas eleitorais, então, que deveriam ser o momento máximo de politização do tecido social, onde as pessoas deveriam selecionar políticas públicas e alternativas para o País, se transmudam em guerras particulares onde os candidatos fazem tudo o que for preciso para garantir suas eleições, menos apresentar propostas criteriosas e debater política com seriedade.

No sistema de voto nominal, há sempre duas competições. A primeira, aquela que é assumida enquanto tal, é a disputa entre os partidos. A segunda, dificilmente percebida pelos eleitores, é entre os candidatos de um mesmo partido. Na verdade, esta segunda disputa é a mais aguda, porque os candidatos de um mesmo partido compartilham, para além das suas bases “próprias”, uma base eleitoral comum, normalmente definida pelos apoiadores da candidatura majoritária apoiada pelo partido. Na tentativa de estar entre os mais votados da legenda, muitos dos candidatos terminam se envolvendo em estratégias de guerra contra seus correligionários. Essas disputas degradam os partidos como instituições e acrescentam novo elemento de despolitização ao processo eleitoral.

Se o conjunto dos candidatos apresentados pelos partidos não possuem, como regra, sequer uma identidade político-ideológica e se os eleitos foram selecionados pelas relações que mantêm com suas bases, então é evidente que a relação de fidelidade possível será aquela firmada entre o eleito e sua base, não entre o eleito e seu partido. No momento de definir a posição partidária em qualquer tema relevante no Parlamento, os partidos dificilmente conseguirão “enquadrar” suas bancadas de acordo com definições programáticas. É mais provável que as bancadas enquadrem os partidos. O processo eleitoral de seleção dos parlamentares, então, passa a definir o conteúdo político-ideológico dos partidos. Vimos, entretanto, que os parlamentares não costumam ser porta-vozes de posições definidas. A maioria, pelo menos, é formada por despachantes de interesses e se conduz sobre um vazio programático. É exatamente esse deserto que ambientará a vida partidária.

A lista aberta permite que outras disfunções na representação ocorram. Uma das mais impressionantes é a eleição de candidatos inexpressivos. Isso irá ocorrer sempre que as nominatas contarem com “campeões de votos”, normalmente personalidades conhecidas por razões não políticas. Os casos de Celso Russomano (PRB) e de Tiririca (PR), nesse particular, são emblemáticos. Com votações superiores a um milhão de votos em São Paulo, em 2014, para a Câmara dos Deputados, ambos garantiram sozinhos a eleição de vários outros candidatos dos seus partidos ou coligações; alguns com votações muito baixas.

Eleições proporcionais equilibram a representação parlamentar e são, por isso mesmo, muito mais democráticas quando comparadas aos modelos de voto distrital. O voto distrital acarreta um déficit democrático e tende a piorar ainda mais a qualidade da representação. Primeiro, porque perderíamos os votos dados às minorias, o que pressiona o sistema em direção ao bipartidarismo; segundo, porque os eleitos tenderiam a regular suas ações pelos interesses dos seus distritos, o que significa uma dose ainda maior de mandatos paroquiais, vale dizer: mandatos com menos compromissos com o Brasil e incapazes de lidar com temas complexos que envolvem políticas públicas e definições nacionais. Entre os modelos de voto distrital, aquele vigente na Alemanha é uma exceção interessante porque preserva o critério da proporcionalidade com o instituto de dois votos: um para o partido, outro para o candidato do distrito. Os partidos representativos – aqueles que ultrapassam a cláusula de barreira – garantem vagas no Parlamento proporcionalmente à votação que recebem enquanto partidos, descontando os distritais que elegeram.

Não se trata, então, de trocar o modelo proporcional, mas de assegurá-lo. O problema, de fato, não é a proporcionalidade, mas a lista aberta.

Lista fechada e financiamento cidadão

A primeira reforma necessária para a qualificação de nossa representação política é a introdução das listas fechadas. Nesse modelo, cada partido tem uma só campanha em todo o País. Assim, ao invés de milhares de candidatos (cada um com sua campanha, seus panfletos, seus slogans, sua arrecadação, etc), teríamos algo como uma ou duas dezenas de listas. No sistema de listas fechadas, os candidatos indicados pelos partidos ou por associações cidadãs (no caso de se optar pela possibilidade de listas não partidárias) são apresentados aos eleitores em listas pré-ordenadas. Se uma lista alcançar votação correspondente a quatro cadeiras no Parlamento, os quatro primeiros candidatos da lista serão os eleitos.  Logo, o interesse dos candidatos é estar nas melhores posições da lista de seu partido (ou associação) e garantir que os eleitores a selecionem. Para tanto, eles precisam contar com força dentro dos partidos, ou seja, filiados dispostos a indicá-lo em prévias para as primeiras posições da lista. Os candidatos precisarão, assim, antes de tudo, convencer seus eventuais apoiadores a se filiarem ao partido [1]. Depois, na campanha, todos os candidatos da lista tratarão de convencer os eleitores a votar na lista do partido ou associação, o que exige a diferenciação de projetos e situa a lógica das campanhas eleitorais em uma dinâmica propriamente política, não pessoal ou carismática.

Com as listas fechadas, as campanhas podem ser muito baratas, porque se trata de vender a imagem de um partido ou associação, não de milhares de candidatos, circunstância que viabiliza o financiamento das campanhas por contribuições da cidadania. O financiamento via doações de empresas não deve ser permitido, porque ele referenda expressiva desigualdade nas campanhas. Não se pode equalizar em termos absolutos os meios de campanha, nem seria razoável almejá-lo. Os recursos disponíveis para uma campanha eleitoral devem refletir, pelo menos em larga medida, a representatividade social dos partidos. Logo, partidos mais representativos devem possuir mais recursos, o que assinala uma forma de desigualdade justa. Se a regra eleitoral permitir a doação de empresas, entretanto, se introduzirá desigualdade injusta, porque mesmo partidos sem maior representatividade, mas sintonizados com o mercado, teriam enormes vantagens competitivas.

Os críticos do sistema de listas fechadas costumam dizer que isso permitiria que os partidos indicassem em posições de destaque candidatos que tenderiam a ser rechaçados pelo voto nominal. Claro que sim. A diferença é que, com as listas fechadas, os eleitores teriam como identificar essa intenção e os partidos arcariam com o desgaste da manobra. No mais, seria interessante perguntar quando o atual sistema de voto nominal auxiliou a rechaçar pilantras. A experiência tem mostrado que candidatos corruptos não possuem qualquer dificuldade em assegurar sucessivas reeleições. As listas abertas, na verdade, facilitam esse resultado.

No sistema de voto em lista fechada, o primeiro nome da lista de cada partido costuma ser, também, seu candidato às eleições majoritárias. Essa medida permite que quadros políticos mais experientes e capacitados (em tese aqueles selecionados para as disputas majoritárias) sejam aproveitados pelo Parlamento desde que seus partidos tenham alcançado o quociente eleitoral.

O fim da reeleição

Pelo sistema político atual, um parlamentar pode ser reeleito sucessivas vezes. Não raro, políticos brasileiros permanecem por décadas no Parlamento. A reeleição é o incentivo que mais regula os mandatos. Em regra, os parlamentares agem assumindo posições que ampliem suas possibilidades eleitorais. Um importante elemento do cálculo político-eleitoral realizado no atual modelo é a posição dos financiadores de campanha. A proibição legal de doações de empresas às campanhas eleitorais criou embaraços ao modelo de financiamento privado, mas não o inviabilizou. Doações “não contabilizadas” seguem existindo e são de difícil identificação, especialmente quando se concentram na montagem de máquinas de cabos eleitorais, muitos dos quais remunerados regiamente “por resultado”, vale dizer, por votos obtidos em sua área de campanha.

O modelo vigente assegura aos parlamentares um conjunto extraordinário de vantagens em processos eleitorais, processo que foi reforçado com acesso privilegiadíssimo às verbas do Fundo Partidário, o que deverá reduzir em muito a margem de renovação, especialmente no Congresso. A segunda reforma necessária à qualificação da representação política exige, por isso mesmo, o fim da reeleição em todos os níveis (no Legislativo e no Executivo). Para conquistar essa mudança se poderia, inclusive, aumentar a duração dos mandatos de 4 para 6 anos, reduzindo-se os mandatos no Senado para esse limite. Uma pessoa só poderia desempenhar um mandato parlamentar e um mandato executivo, em cada nível de representação. Essa mudança, a mais radical, permitiria que os mandatos eleitorais fossem concebidos como honrarias, não como carreiras. A medida reduziria o interesse dos aproveitadores, interessados em se eternizar em posições de destaque. O custo social da medida envolve a perda de parte do acúmulo propiciado pela experiência política, mas as vantagens compensariam largamente esse custo.

A primeira das vantagens é a redução do espaço para os discursos demagógicos. Sem reeleição possível, os detentores de mandatos não teriam motivos pessoais para modular suas opções políticas. Sem reeleição, o perfil das assessorias parlamentares seria redefinido, porque “cabos eleitorais” seriam inúteis. A recompensa para um único mandato tende a ser, progressivamente, apenas aquela derivada do reconhecimento público. O desafio para os representantes de um só mandato, por isso, será o de serem lembrados pelo que foram capazes de realizar.

A eleição pelo sistema de lista fechada facilita que os mandatos parlamentares sejam independentes de demandas locais ou corporativas. O espaço para a lógica da clientela é, nesse sistema, muito menor e mesmo as relações de interesse que irão permanecer serão definidas em termos partidários, não individuais. Assim, por exemplo, determinados partidos serão mais permeáveis às demandas dos banqueiros ou dos empresários, ou dos assalariados; dos ambientalistas, das comunidades indígenas ou dos ruralistas etc. A diferença é que proximidades do tipo serão mais claramente identidades políticas, facilitando aos eleitores o processo de identificação dos compromissos reais de cada partido. Pelo modelo atual, cada representante pode definir posições diferentes diante das demandas de interesse, inclusive parlamentares de um mesmo partido firmam posições próprias a respeito, o que despolitiza todas as disputas, obstaculizando a formação de consciência política.

Paridade de gênero

A legislação eleitoral brasileira prevê o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo, para as eleições proporcionais. A ideia da quota foi a de forçar os partidos a apresentar mais candidatas mulheres. A quota, entretanto, não contribuiu para um avanço no número de mulheres eleitas.  Os partidos, por seu turno, transformaram a quota em fraude, porque várias das candidatas são “laranjas”.

O fato impressionante é que o Brasil tem menos mulheres no Parlamento do que a Arábia Saudita, um país onde há segregação sexual. Para se resolver esse problema, devemos fixar cotas no Parlamento, não nas listas de candidatos. O ideal seria a definição de uma progressão até a paridade de gênero na representação. Em uma primeira eleição, 30% das vagas no Parlamento seriam ocupadas por mulheres; na eleição seguinte, 35% e assim, sucessivamente, até se alcançar os 50%.

Voto facultativo

O voto obrigatório não tem relação de pertinência com a lógica democrática. Em um Estado Democrático de Direito, as pessoas devem ter o direito ao desinteresse político. Não por acaso, entre as quinze maiores economias do mundo [2], apenas o Brasil possui voto obrigatório. Em todo o mundo, apenas 24 países estabelecem a obrigatoriedade do voto, sendo que 13 deles estão na América Latina (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Costa Rica, Equador, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai). Os outros países são: República Democrática do Congo, Egito, Grécia, Líbano, Líbia, Nauru, Tailândia, Bélgica, Austrália, Luxemburgo e Singapura.

Por óbvio, é ruim que uma parcela expressiva da cidadania se mantenha alheia ao debate político. Não se equaciona o desafio do envolvimento da cidadania com a política, entretanto, tornando o voto obrigatório. Só o que se alcança com a obrigatoriedade do voto são taxas mais altas de opções inconsistentes. Em 2010, pesquisa realizada pelo DataFolha mostrou que, menos de 20 dias após as eleições, 30% dos eleitores não se recordavam mais em quem tinham votado. Para o Senado, onde havia duas vagas em disputa, 28% dos eleitores não sabiam em quem haviam votado. Essa margem de “votos sonâmbulos” decide eleições no Brasil e mantê-la é uma das tantas opções desarrazoadas do sistema eleitoral vigente.

[1] No caso de listas não-partidárias, formadas por associações cidadãs, a forma de ordenamento das listas também poderia envolver prévias entre os apoiadores.

[2] EUA, China, Japão, Índia, Alemanha, Reino Unido, Rússia, França, Brasil, Itália, México, Coréia do Sul, Espanha, Canadá e Indonésia.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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