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9 de agosto de 2018
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20:01

Crianças fora da escola, a distopia de Bolsonaro

Por
Sul 21
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Crianças fora da escola, a distopia de Bolsonaro
Crianças fora da escola, a distopia de Bolsonaro
Cena de Fahrenheit 451, de François Truffaut (Reprodução)

Marcos Rolim (*)

Por trás da proposta de Bolsonaro de uma educação fundamental via EAD, repousa uma distopia religiosa que oferece gravíssima ameaça às crianças brasileiras e que prepara o ambiente para o “retorno ao lar” das mulheres, para que assumam “seus deveres” na socialização primária, como boas donas de casa tementes a Deus.

Nos anos 80, nos EUA, cerca de dez mil crianças eram educadas em suas casas por seus pais, ao invés de irem à escola. Hoje, são mais de dois milhões de meninos e meninas educados em casa. A prática conhecida como homeschooling alcançou essa proporção não porque as crianças tenham necessidades especiais, ou porque vivam em áreas isoladas ou distantes de escolas, mas porque seus pais são cristãos fundamentalistas que repudiam o secularismo, o liberalismo, o humanismo, as noções igualitárias entre homens e mulheres e o modo de socialização marcado pelo respeito às diferenças, o que inclui o convívio com pessoas de diferentes religiões, com agnósticos e com ateus. Para “proteger” seus filhos dessas diferenças e daquilo que imaginam ser o potencial danoso da escola, os fundamentalistas americanos encerram suas crianças e adolescentes em casa e lhes ensinam a partir da Bíblia; não raro, aliás, com interpretações dogmáticas que enaltecem comportamentos intolerantes. É esse modelo que ampara a proposta defendida por Bolsonaro de assegurar ensino a distância (EAD) para as crianças desde o Fundamental, como uma forma de “economizar na Educação” e “combater o marxismo”.

Por mais de 150 anos, os americanos foram obrigados legalmente a matricular seus filhos em escolas. A prática de homeschooling era ilegal em todos os 50 estados. Nas últimas décadas, passou-se a regulamentar estritamente a possibilidade da educação em casa. As crianças tinham que prestar exames periódicos, os pais e os tutores precisavam ter certificados de cursos de capacitação, havia currículos a seguir, etc. A partir dos anos 80, com o avanço da direita americana, essas regras foram sendo abandonadas até se chegar à situação atual em que os pais simplesmente “têm o direito” de não oferecer as suas crianças qualquer oportunidade de educação formal. Os EUA experimentam, nesse particular, um dos maiores retrocessos na área da Educação de que se tem notícia. A opção de educar os filhos em casa tem feito, inclusive, com que meninos e meninas recebam formações diferentes quando seus pais pertencem a seitas como, por exemplo, o Movimento Cristão Patriarcal Quiverfull que abomina qualquer forma de prevenção à gravidez (inclusive o planejamento familiar) e que defende que as mulheres devem ser “boas mães e esposas submissas”.

Independente do debate a respeito dos efeitos pedagógicos de uma educação insular, é importante lembrar que a Escola promove um dos fatores protetivos mais importantes às crianças, permitindo que casos de violência sexual, negligência e maus tratos sejam conhecidos. Nos EUA, 95% de todas as denúncias a respeito de crianças abusadas ou maltratadas são oferecidas por professores ou funcionários de escolas. Os que sustentam a educação em casa não se cansam de enaltecer o amor incondicional de pais e mães por seus filhos, sugerindo que esse sentimento promove um ambiente ideal de aprendizagem com as crianças totalmente seguras. Tal visão, idílica, é falsa do começo ao fim.

A verdade é que os lares são ambientes especialmente inseguros para as crianças, exatamente pela privacidade que esconde a violência, as práticas incestuosas e toda sorte de abusos. No mais, crianças devem ser respeitadas nas escolas porque são seres humanos, não porque são “sangue de meu sangue”. Quando os regulamentos de uma instituição escolar são aplicados, o são da mesma forma para todas as crianças, o que inicia o tipo de interação que caracteriza a cidadania moderna. Não por acaso, o ideal republicano sempre encontrou na escola pública um dos seus símbolos mais expressivos. Em uma República, educa-se para o exercício de direitos, não para a submissão.

Um dos riscos apontados por estudos na área da psicologia do desenvolvimento é, precisamente, o de que o homeschooling promova um tipo de “servilismo ético” (ethical servility), algo como um processo de formação moral baseado não na liberdade e no espírito crítico, mas na noção de obediência. Para todas as correntes fundamentalistas, esse é, exatamente, um dos objetivos a serem alcançados.

Bolsonaro, aliás, afirmou que usará um “lança chamas” no Ministério da Educação para tirar de lá as ideias de Paulo Freire, teórico do pensamento crítico nas escolas. Faz todo o sentido. O fogo foi sempre um aliado importante das trevas. Foi com ele que a Inquisição matou milhares de mulheres apontadas como bruxas e pecadoras na Idade Média. Em 10 de maio de 1933, os nazistas promoveram fogueiras imensas em uma Alemanha empalidecida pelo ódio, queimando centenas de milhares de livros de autores inconvenientes ao regime, entre eles Stefan Zweig, Thomas Mann e Sigmund Freud, um verdadeiro bibliocausto. Ocorreu o mesmo no Cambodja, com o Khmer Vermelho; no Chile com Pinochet; na Espanha franquista, na revolução cultural de Mao-Tsé-Tung; na Argentina dos generais; na Cuba castrista e em muitas outras experiências onde o intolerável se tornou o Poder. A imagem usada por Bolsonaro, aliás, projeta o cenário de Fahrenheit 451, romance de Ray Bradbury adaptado para o cinema por François Truffaut. A história apresenta uma sociedade futura onde todos os livros foram proibidos, onde as posições críticas são consideradas antissociais e hedonistas e o pensamento é interditado; um lugar de sonhos para os bolsomínions, em síntese.

Por trás da proposta de Bolsonaro de uma educação fundamental via EAD, repousa uma distopia religiosa que oferece gravíssima ameaça às crianças brasileiras e que prepara o ambiente para o “retorno ao lar” das mulheres, para que assumam “seus deveres” na socialização primária, como boas donas de casa tementes a Deus. Tal distopia aparece com as cores do anticomunismo, porque elas são as que permitem o trânsito do obscurantismo entre nós. Que ninguém se iluda, entretanto. O problema de Bolsonaro não é e nunca foi o comunismo, mas a civilização ocidental, os ideais iluministas e a democracia.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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