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17 de maio de 2018
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10:50

Princípio 9 – Sobre a PM que matou o assaltante

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Princípio 9 – Sobre a PM que matou o assaltante
Princípio 9 – Sobre a PM que matou o assaltante

 

Governador de São Paulo prestou a homenagem à policial. Divulgação

Marcos Rolim (*)

É preciso firmar a compreensão de que todo aquele que empunha uma arma de fogo para praticar um crime lida com a iminência do assassinato de sua vítima. Tal postura rompe com o protocolo elementar de convivência e situa o responsável como alguém que representa uma ameaça intolerável, independentemente de sua história, motivos ou necessidades.

No último sábado, na região metropolitana de São Paulo, um rapaz apontou uma arma para um grupo de pessoas, a maioria delas mulheres que aguardavam, com seus filhos, a abertura dos portões de uma escola particular onde se realizaria atividade relativa ao dia das mães. Entre elas, havia uma policial militar em seu período de folga, que decidiu responder à grave ameaça usando sua arma. Ela surpreendeu o assaltante, baleando-o com três tiros. O jovem foi conduzido ao hospital, mas não resistiu aos ferimentos. A imprensa noticiou o fato com destaque e as imagens, captadas por uma câmera de rua, foram vistas por muitas pessoas nas redes sociais. A mulher, Katia da Silva Sastre, 42 anos, é cabo da PM de São Paulo; o assaltante chamava-se Elivelton Neves Moreira e tinha 21 anos. No domingo pela manhã, o governador interino de São Paulo, Márcio França (PSB), prestou homenagem à policial em cerimônia no Comando de Policiamento de Área Metropolitana-4.

Há muitas perguntas que surgem naturalmente diante dessa ocorrência. Agiu certo a PM ao tomar a decisão de atirar? O fato de ter disparado sua arma não aumentou o risco das pessoas a sua volta? Sua atitude tem amparo legal? Em caso positivo, qual o dispositivo que a ampara? Agiu certo o governador ao homenagear a policial? O que o comando da PM de São Paulo pensa a respeito?

Para respondê-las é preciso começar pelo mais importante regramento em vigor no País sobre a matéria, os “Princípios Básicos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei”, adotados por consenso em 7 de setembro de 1990, por ocasião do Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes (https://goo.gl/78bDB2). O princípio 9 dessa Resolução assinala:

Os responsáveis pela aplicação da lei não usarão armas de fogo contra pessoas, exceto em casos de legítima defesa própria ou de outrem contra ameaça iminente de morte ou ferimento grave; para impedir a perpetração de crime particularmente grave que envolva séria ameaça à vida; para efetuar a prisão de alguém que represente tal risco e resista à autoridade; ou para impedir a fuga de tal indivíduo, e isso apenas nos casos em que outros meios menos extremados revelem-se insuficientes para atingir tais objetivos. Em qualquer caso, o uso letal intencional de armas de fogo só poderá ser feito quando estritamente inevitável à proteção da vida.

A resolução foi incorporada pela Portaria Interministerial nº 4.226 de 31 de dezembro de 2010 (https://goo.gl/vSWU3M) e deve ser estritamente observada pelos agentes encarregados de fazer cumprir a Lei. O que ela determina é que não há a possibilidade de um policial disparar sua arma quando não se tratar de salvar a vida de alguém, incluindo a sua própria, diante de risco iminente de vida.

Pois bem, a situação que envolveu a cabo Kátia diz respeito, exatamente, a uma das circunstâncias onde havia risco iminente de vida de terceiros. Deve-se acrescentar, ainda, que o fato da policial estar à paisana, mas armada, acarretava também risco de vida a ela, porque se tornou comum no Brasil que criminosos executem policiais em assaltos quando esses são identificados como tais, o que levanta uma questão importante sobre a segurança dos policiais e sobre a própria decisão desses profissionais de portar arma de fogo em período de folga.

A policial tomou uma decisão que comportava riscos, é evidente. O fato do assaltante ter, inclusive, efetuado um disparo após ter sido atingido o comprova. O fato é que ela ponderou que não agir envolveria riscos maiores. Pelos elementos disponíveis, entendo que ela decidiu corretamente e que agiu com o profissionalismo e a técnica requerida, inclusive após os disparos.

É preciso firmar a compreensão de que todo aquele que empunha uma arma de fogo para praticar um crime lida com a iminência do assassinato de sua vítima. Tal postura rompe com o protocolo elementar de convivência e situa o responsável como alguém que representa uma ameaça intolerável, independentemente de sua história, motivos ou necessidades. Roubos são, por isso mesmo, o tipo do delito que dilacera o tecido social e que submete as vítimas a uma experiência de terror que assinala gravíssima violação dos direitos humanos. Nessas circunstâncias, a morte do autor é absolutamente legítima, embora não deva ser desejada, nem comemorada.

O governador de São Paulo prestou a homenagem à policial por conta de seus objetivos políticos. Percebendo o tipo de reação de boa parte do público que exultou com a morte do assaltante, procurou sintonizar-se com a demanda pública pela morte dos criminosos, reproduzindo a postura oportunista que caracteriza os políticos tradicionais. Tivesse consultado a direção da PM de São Paulo, ouviria que a corporação está empenhada em reduzir o número de ocorrências letais e que, por mais que a conduta da cabo Kátia seja considerada correta, homenageá-la em cerimônia exclusiva produz a mensagem equivocada de que policiais só são reconhecidos quando matam delinquentes comuns. Em 2017, as polícias brasileiras mataram 5.012 pessoas, 19% a mais do que em 2016, um número que envolve várias chacinas. No mesmo ano, 385 policiais foram mortos (15% a menos que em 2016). As polícias de São Paulo e Rio de Janeiro concentram a grande maioria dessas ocorrências. Quanto mais violenta uma polícia, maior também a quantidade de policiais mortos.

Sobre as homenagens, aliás, deveríamos introduzir uma cerimônia anual de reconhecimento aos policiais civis e militares, bem como aos demais profissionais da segurança pública como bombeiros, agentes penitenciários e peritos, que tenham se destacado por salvar vidas (o que inclui, excepcionalmente, a morte de agressores), proteger direitos, auxiliar pessoas ou desenvolver projetos exitosos de prevenção. Todos os dias, muitos dos melhores policiais que temos estão prevenindo crime e violência, prestando assistência a pessoas que mais precisam, protegendo os mais frágeis e amparando vítimas. Não há um espaço institucional em que se lhes ofereça o devido reconhecimento. É preciso criar esse espaço e reduzir o espaço dos demagogos.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016).

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As opiniões emitidas nas matérias de opinião assinadas expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento do Sul21.


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