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29 de março de 2018
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11:15

O Brasil do relho

Por
Sul 21
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O Brasil do relho
O Brasil do relho
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Marcos Rolim (*)

No hay muerto que no me duela,
No hay un bando ganador,
No hay nada más que dolor
Y otra vida que se vuela.
La guerra es muy mala escuela
No importa el disfraz que viste,
Perdonen que no me aliste
Bajo ninguna bandera,
Vale más cualquier quimera
Que un trozo de tela triste.

Jorge Drexler,
(Milonga del Moro Judio)

O quadro político nacional caminha para um agravamento das tensões em uma escala ainda não conhecida. A possível revisão pelo STF da jurisprudência do início do cumprimento da pena após condenação em 2ª instância será recebida pela opinião pública como uma clara opção da Corte pela impunidade de todos os implicados pela Lava Jato. Se esse for mesmo o desfecho, Lula não será preso e todos aqueles já presos por sentenças prolatadas em segunda instância serão liberados, incluindo Eduardo Cunha e uma penca de outros bandidos ricos. Respeito muito a tradição do garantismo jurídico que sustenta a necessidade do STF rever aquele entendimento. Há no garantismo uma promessa civilizatória decisiva, razão pela qual ele deve ser valorizado sobremaneira. Nesse particular, entretanto, fui convencido pelos argumentos expressos no voto do ministro Barroso (veja aqui: https://goo.gl/pMzsTM ) segundo a qual a presunção de inocência deve ser ponderada com outros valores constitucionais, como a vida, a integridade física, o patrimônio das pessoas e a moralidade administrativa. Independente desse debate, penso que as reações serão explosivas caso se confirme a revisão da posição do STF.

O ar se tornou rarefeito por antecipação e o Supremo já é o centro dos ataques nas redes sociais por parte dos grupos de extrema direita. A linha geral desse tipo de discurso é a aposta no confronto, com exortações à invasão e queima de prédios públicos, com denúncias à mídia, especialmente à Globo, apresentada como “criptocomunista”, “propagandista do PSOL”, “defensora da arte pedófila e da ideologia de gênero” (sic).

Toda violência real, aquela que craveja corpos à bala, que tortura e macera, que humilha pela dor física, começa pela palavra. Antes de ser ação, a violência foi dita de alguma forma; antecipada como sentença, ameaça e ódio. Ela começa na desconsideração pelo outro, na transformação do humano em coisa repulsiva, abjeta. Para que a violência transite entre as pessoas, é preciso que ela seja amparada por um discurso. Por isso, os nazistas se referiam aos judeus usando palavras como “ratazanas”, “bacilos”, etc. Essa é também a razão pela qual era necessário despojar os prisioneiros dos campos de extermínio das suas identidades pessoais (bens, roupas, cabelos), de tal forma que todos se assemelhassem a um coletivo sub-humano, o que facilitava a condução às câmaras de gás. A desumanização do outro é o passo mais eficiente para legitimar a violência e, no limite, sua eliminação física. Quando permitimos que se chame um suspeito de “vagabundo”, quando tratamos determinados grupos como se fossem execráveis, indecentes, imprestáveis, construímos uma gramática de exclusão que convoca a morte. Como regra, ela compreende perfeitamente o convite e é solícita.

A Caravana de Lula foi atacada por grupos proponentes da violência em várias cidades nos estados do sul. Seria muito compreensível que houvesse protestos, que os inconformados organizassem atos de repúdio, que se pronunciassem em praça pública. Não foi essa a escolha. A decisão foi impedir a caravana, lhe cortar o caminho, trancar os acessos às cidades. Não houve protesto, mas agressões de vários tipos. Uma das faixas exibidas pelos indignados e que expressa sua formação cultural foi “Lula teu cu”, o que encantou sites como O Antagonista que acharam tudo muito divertido. Fixação anal? Problemas de retenção na primeira infância? Vai saber. Então as palavras viraram ovos e depois viraram pedras e, finalmente, tiros.

A violência precisa ser contrastada pela responsabilização penal, mas, sobretudo, pelo compromisso com a democracia. As cidades não possuem donos. Elas são feitas de homens e mulheres livres que defendem suas ideias e que se deslocam soberanamente. Lula foi condenado em um processo e disputa com os recursos do Estado de Direito uma nova situação. Os que foram xingá-lo já votaram em muitos políticos que respondem a processos criminais por corrupção na mesma operação Lava Jato, entre eles uma extensa lista de políticos gaúchos do PP e do PMDB. Não há notícia de que algum deles tenha enfrentado qualquer dificuldade em se reunir com suas bases nas mesmas cidades por onde Lula passou.

Então, na convenção do PP, a senadora Ana Amélia elogiou as cidades que “botaram aquele povo para correr” e afirmou que era preciso “levantar o relho, para mostrar onde estão os gaúchos”. A senadora foi muito aplaudida. O mesmo evento escolheu o deputado Luiz Carlos Heinze como pré-candidato ao governo do Estado. Heinze é o deputado que, em 2013, afirmou que, no governo Dilma, estavam “aninhados quilombolas, índios, gays, lésbicas, tudo que não presta”. Heinze foi o deputado federal mais votado do RS nas últimas eleições. O partido que projeta essas duas personalidades tão distintas é formado pela turma que sustentou a ditadura durante mais de 20 anos.

Todos viraram democratas desde criancinhas e assim se apresentam publicamente. Às vezes, entretanto, a palavra lhes foge. A ânsia pelo aplauso fácil, a sensação de compartilhar com os camaradas os mesmos signos de pertencimento aos “velhos tempos”, aqueles onde era possível prender sem mandado, demitir o jornalista e o professor metido, pendurar no pau-de-arara o comuna até ele falar, apertar o vagabundo em nome dos cidadãos de bem, aquietar a negrada no seu lugar e lembrar a peonada e o chinaredo quem é o patrão. Valores da família, não é mesmo? Que ficaram presos na garganta em tempos de “politicamente correto”, de “ditadura dos gays”, “dessa pouca vergonha toda”. Então, às vezes, a palavra lhes escapa. Eles me fazem lembrar aquele personagem de Stanley Kubrick em “Dr. Fantástico” (Dr. Strangelove), o cientista alemão preso a uma cadeira de rodas e que procurava, sem muito sucesso, segurar seu próprio braço direito que teimava em fazer a saudação nazista.

O relho é apreciado e cantado em prosa e verso no RS por um certo “tradicionalismo” que imagina o mundo a partir da doma. Azorrague de couro torcido, chicote, mango, rebenque, rabo-de-tatu, estetizamos os diferentes nomes do açoite porque ele traduz a obediência. O relho, mais que um instrumento das lidas campeiras, é um símbolo. “O melenudo grudou os garrões nas ilhargas e desceu o rabo-de-tatu” (Brasil Dubal, Fronteira Inclemente, P.A, Editora Movimento, 1976, p. 215); “O capataz apeia do picaço, de faca à cinta, junto ao tirador; prende ao teimoso cão forte relhaço, e à res o ferro leva, ao sangrador” (Miguel Atayde D’Ávila, A Sangria in Revista Querência, nº 2, P.A. 1949, p.19). Naquela peleia brasina /O combate foi desparelho / Dei-lhe uma tunda de relho/ Na frente da correntina (“Gauderiando”, de Paulo Sérgio Boita). Meu relho trançado eu carrego comigo / É a arma que eu tenho pra fraco inimigo! /Tu puxa o trabuco e eu vou no perigo / E marco o teu lombo no sistema antigo (Relho Trançado, Teixeirinha). As citações são infinitas.

Em Passo Fundo, onde Lula foi impedido de entrar, as músicas mais tocadas nas emissoras de rádio entre 1997 e 2000, segundo pesquisa dos alunos de comunicação Social da UPF, foram “Criado em Galpão” (Os Serranos) e “Não chora China Veia” (Garotos de Ouro). A primeira diz: “Gosto de fazer um potro se cortar na minha chilena / pra sentir o sopro do vento me esparramando a melena / crinudo que sacode arreio engancho só na paleta / pois as esporas que eu uso tem veneno na roseta / tenho um preparo de doma trançado com perfeição / pra fazer qualquer ventena saber que é este peão”. A segunda mais tocada diz: “Fui criado meio xucro / e não sei fazer carinho / se acordar de pé trocado / eu boto fogo no ninho. / Eu já fiz chover três dias / só pra apagar o teu rastro / e se a china for embora / eu faço voltar à laço”.

Essa escala de valores que envolve maus tratos a animais e a submissão das mulheres pelo laço, entre outras habilidades, segue pilchada e garbosa. A novidade é que a turma do relho, que havia guardado seus apetrechos, nunca esteve tão animada. Eles estarão no segundo turno nas eleições presidenciais e, se as forças democráticas não se acordarem, botarão fogo no ninho.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016).


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