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7 de dezembro de 2017
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10:00

O passado, demasiadamente

Por
Sul 21
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O passado, demasiadamente
O passado, demasiadamente
Em “Nostalgia da luz”, cientistas perscrutam o mais estrelado céu e abnegadas mulheres buscam pelos corpos de seus filhos enterrados clandestinamente pela ditadura de Pinochet. (Divulgação)

Marcos Rolim (*)

O grande documentarista chileno Patricio Guzmán, autor de trabalhos seminais, como “A batalha do Chile”, “A memória obstinada” e “Nostalgia da luz”, concedeu bela entrevista, na segunda-feira (04), ao programa “Conversando com Bial”, na Globo (disponível em https://globoplay.globo.com/v/6334843/). O programa contou, também, com a participação de Tata Amaral e de Camilo Tavares. Durante a entrevista, foi exibido um trailer de “Nostalgia da luz”, a obra em que Guzmán nos conduz ao deserto de Atacama. Na região, cientistas de todo o mundo perscrutam o mais estrelado céu e abnegadas mulheres buscam pelos corpos de seus filhos enterrados clandestinamente pela ditadura de Pinochet. Em certo momento da narrativa, Guzmán diz “aqueles que têm memória são capazes de viver no frágil tempo presente. Os que não a tem não vivem em parte alguma”.

Trata-se de uma frase muito densa que, por isso mesmo, pode ser lida em diversos recortes. Em uma dimensão primordial, a da existência mesma das pessoas, ela é, para mim, particularmente triste, porque me coloca diante de minha mãe, gravemente afetada pelo mal de Alzheimer, que já quase não se recorda. A sensação é que a demência a situa em um mundo feito de parte alguma, o que, imagino, deva ser um local inóspito e incompreensível. Não lembrar mais, de nada mais, é o mesmo que não ser. Ou somos algo para além da memória?

Na dimensão política e social, talvez se possa identificar uma dinâmica demencial no Brasil. Se somos, mesmo, uma nação com pouca memória, então isso não seria apenas uma metáfora. Às vezes, me dou conta de que carregamos um vazio sobre o que nos antecedeu. Não só porque sabemos pouco sobre o que foi, mas, talvez, porque aquilo que foi não tenha se apartado verdadeiramente de nós. Não me refiro aqui à importância das tradições ou do reconhecimento das trilhas que nossos antepassados foram construindo. Meu ponto pode ser traduzido por uma pergunta: o presente em que vivemos no Brasil rompeu com que dimensões do nosso passado?

Aqueles que estudaram as características da brasilidade e nossa formação histórica assinalaram já o quanto o Brasil tem se realizado compulsivamente como continuidade, nunca como ruptura. Ora, para que o passado passe de fato, é preciso reconhecer o que abandonamos. Para conhecer o passado, é preciso que ele seja um objeto distinto, que nosso olhar se debruce sobre o que nos parece estranho nele. No 18 Brumário, Marx assinalou que “a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. No Brasil, entretanto, a tradição das gerações mortas não oprime o cérebro de quase ninguém. Aqui, os vivos ressuscitam os mortos, vestem suas túnicas, lêem seus programas, utilizam seus conceitos e se comprometem com as práticas de sempre, tudo, é claro, por conta de alguma razão superior e jamais esclarecida que relega para o futuro aquilo que deveria ter sido feito ontem.

Quem olhar criteriosamente para o contencioso político brasileiro verá o que além do passado? Pouca coisa, me parece. Muito pouca. No Brasil, penso que o presente seja demasiadamente o passado. Para todos os efeitos, à direita e à esquerda, é como se não houvesse o que lembrar, só o que repetir.

(*) Doutor e mestre em Sociologia e jornalista. Presidente do Instituto Cidade Segura. Autor, entre outros, de “A Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência extrema” (Appris, 2016).


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