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4 de novembro de 2017
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10:08

O que a esquerda tem a oferecer diante da violência no país?

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Sul 21
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O que a esquerda tem a oferecer diante da violência no país?
O que a esquerda tem a oferecer diante da violência no país?
O crescimento galopante da violência no país convive com a redução nos gastos com políticas de segurança pública, especialmente no âmbito do governo federal (-10,3%), mas igualmente nos estados (-1,7%). (Foto: Alejandro Olivares/Agência Pública)

Marcelli Cipriani

Foram divulgados, nesta semana, alguns dos resultados do 10o Anuário de Segurança Pública – publicação veiculada ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) que, anualmente, compila e analisa dados sobre violência, criminalidade, sistema prisional, dentre outros.

O conteúdo é alarmante: ocorreram 61.619 mortes violentas intencionais em 2016, uma média de sete por hora, o índice mais elevado já registrado no Brasil. Os latrocínios seguiram a mesma tendência: foram 17% superiores a 2015, 31% em comparação com 2014. Os estupros subiram 3,5%, beirando aos 50 mil. A polícia brasileira segue sendo a que mais mata e a que mais morre: enquanto a vitimização policial disparou 17,5% em um ano, o número de pessoas mortas em suas intervenções aumentou 25,8% no mesmo período.

O crescimento galopante da violência no país convive com a redução nos gastos com políticas de segurança pública, especialmente no âmbito do governo federal (-10,3%), mas igualmente nos estados (-1,7%). Em paralelo, com o descrédito generalizado nas instituições (progressivamente aprofundado desde o processo de impeachment da ex-presidenta), e com a tendência coletiva ao autoritarismo.

Segundo outro estudo do FBSP, apesar de a predisposição da sociedade brasileira ao autoritarismo ser forte como um todo, ela é matizada por marcadores sociais: aqueles que têm menor poder econômico e menos acesso à escolaridade costumam demandar medidas mais enérgicas e autoritárias. Essas informações vão ao encontro da distribuição heterogênea da própria violência, já que são as pessoas mais pobres que se sentem mais desprotegidas e vulneráveis, como também são elas as que estão mais sujeitas à violência (policial ou cometida pelo crime comum).

Diante de um cenário apocalíptico no que se refere ao crime e ao medo do crime, as respostas mais conservadoras já são bem conhecidas: são as que clamam pelo aniquilamento e as que assumem uma concepção belicista dos processos sociais. Que propõem, por exemplo, a revogação do estatuto do desarmamento, a redução da maioridade penal, o desprezo pelos direitos dos acusados no processo penal, a intensificação do aprisionamento, o endurecimento das leis, a denúncia a uma suposta (mas inexistente) impunidade e ao que chamam de “bandidolatria”.

São, todas, “soluções” que costumam ser rechaçadas por especialistas nas áreas de segurança pública e do sistema de justiça criminal, assim como por grupos políticos situados à esquerda do espectro ideológico. As razões para isso são muitas, e perpassam desde pelo reconhecimento da falência histórica dessas medidas na redução do crime e da violência (que podem mesmo causar o efeito inverso), até pela defesa de garantias fundamentais e dos direitos humanos.

Porém, nas diferentes instâncias governamentais, as gestões de esquerda não causaram grandes impactos positivos na segurança pública. Em que pese algumas tentativas pontuais na seara do Legislativo e do Executivo (como a criação do Pronasci em 2007, desmantelado poucos anos mais tarde), não foram observadas mudanças substanciais na consolidação de planos nacionais de segurança, na integração entre instituições de controle do crime, e na construção de políticas que priorizassem a prevenção à violência. Nos estados, a violência policial e o funcionamento precário do sistema carcerário também parecem ser pouco influenciados pelo alinhamento ideológico dos governos.

Para além das experiências de gestão, a pouca preocupação com essas temáticas fica clara quando iniciativas relevantes como o Vamos!, por exemplo – que se propõe a “botar a mão na massa” para mudar o Brasil –, não as inclui entre os seis eixos fundamentais nos quais seu programa é estruturado. Tal omissão, que não é incomum na esquerda, reforça sua lacuna quanto a essas questões – que, dada a relevância que assume no cotidiano da população como um todo, será instrumentalizada e preenchida de alguma forma.

Por outro lado, a necessidade de negar as resoluções autoritárias faz com que o discurso progressista diante da violência se foque, muitas vezes, na dimensão reativa, buscando demonstrar a fragilidade das propostas conservadoras e seus danos iminentes para a sociedade como um todo.

Porém, apesar de as denúncias ao puntivismo, à ação seletiva das instituições de controle do crime e ao seu funcionamento serem fundamentais, elas não trazem qualquer conforto àqueles e àquelas que, diariamente, temem os homicídios, são afetados pelas brutais disputas do tráfico nas periferias e têm seus bens furtados ou roubados recorrentemente.

É preciso, portanto, construir reações que, sem abrir mão dos pressupostos de uma cultura democrática, sejam abertamente propositivas, criativas, e que se façam capazes de indicar caminhos factíveis para o enfrentamento da violência e do crime na realidade concreta, considerando-se as particularidades da população mais implicada, tradicionalmente já abandonada pelos poderes públicos na promoção da cidadania, bem como mais sujeita ao braço armado do Estado.

Caso o tradicional desprezo da esquerda diante dessas temáticas permanecer uma constante, ela abrirá o terreno para o fortalecimento de lideranças carismáticas que estão atentas às ânsias coletivas, bem como dispostas a fornecer respostas. Respostas que, apesar de pautarem pelo retrocesso nos direitos, pela alegação a soluções simples para problemas complexos e por medidas claramente impraticáveis, são sedutoras, adquirindo mais simpatia do que a mera oposição ou o próprio silêncio.

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Marcelli Cipriani é graduada em Sociologia e em Direito, e atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais. Pesquisa temas relacionados à violência urbana, com ênfase no fenômeno das facções criminais.  


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