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7 de outubro de 2017
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14:50

Salvar fetos, prender jovens, tutelar mulheres

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Sul 21
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Salvar fetos, prender jovens, tutelar mulheres
Salvar fetos, prender jovens, tutelar mulheres
Duas PECs tiveram avanço considerável nos últimos meses, já se encontrando na pauta da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) do Senado Federal e podendo ser votadas a qualquer momento: uma que criminaliza o aborto e outra que reduz inimputabilidade penal dos 18 para os 16 anos. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Marcelli Cipriani

Recentemente, duas Propostas de Emenda à Constituição (PEC) vêm sendo expostas pelas mídias e convertidas em debate público, dado o retrocesso que representam quanto a prerrogativas sociais já adquiridas. As PEC tiveram avanço considerável nos últimos meses, já se encontrando na pauta da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) do Senado Federal e podendo ser votadas a qualquer momento.

Uma delas, de número 33/2012, demanda a redução da idade de inimputabilidade penal dos 18 para os 16 anos através da criação de uma figura jurídica absolutamente nova: a de “incidente de desconsideração de inimputabilidade penal” que, na prática, sugere que adolescentes dessa faixa etária possam ser considerados adultos, devendo responder criminalmente como tal.

A ideia, chamada de “ação de desconsideração da menoridade”, se baseia em premissas como a de que o histórico familiar de um jovem, suas condições culturais, suas oportunidades de recuperação, dentre outros critérios, podem tornar alguns adolescentes menos adolescentes do que outros. Para seus defensores, uma análise de laudo técnico via Ministério Público é capaz de fazer com que certos menores deixem de ser menores, apesar das condições concretas que, atualmente, lhes asseguram essa condição.

A outra, de número 29/2015, pretende tornar o direito à vida inviolável desde a concepção, reconhecendo-a, definitivamente, a partir do momento da fecundação do óvulo pelo espermatozoide. De acordo com os parlamentares que a propuseram, a alegada assertiva seria um fato incontornável, supostamente provado pelos “enormes avanços na ciência registrados nos últimos 20 anos na fetologia e na embriologia”.

A afirmação não é amparada por nenhum indício, e omite que o Conselho Federal de Medicina já se pronunciou favoravelmente à prática da interrupção da gravidez, caso seja feita até o terceiro mês da gestação. Em contrapartida, a medida abre caminho para a criminalização do aborto mesmo nas situações permitidas pela lei: em caso de fetos com anencefalia, de gravidez com risco de vida à gestante e em decorrência de violação sexual.

Para serem aceitas à apreciação da CCJC, as duas propostas de emenda constitucional demandavam um mínimo de 27 assinaturas iniciais, 1/3 do total de integrantes do Senado Federal.

O texto da PEC do aborto, de Magno Malta (PR), foi chancelado por 29 senadores, filiados a partidos dos mais variados. Dentre os representantes do estado – Lasier Martins (PSD), Paulo Paim (PT) e Ana Amélia Lemos (PP) –  a senadora foi a única a não o assinar.

Do total de senadores que corroboraram com o almejo ao veto a qualquer espécie de aborto legal, mais da metade já manifestou ser favorável à diminuição da idade penal. Em verdade, 8 deles constam como autores de ambas as iniciativas legislativas, o que inclui o criador da PEC 33/2012, Aloysio Nunes Ferreira (PSDB). Por sua vez, ainda que Magno Malta não componha a autoria dessa última, é dele o protagonismo de outra proposta sobre a temática: a PEC 90/2003, cujo desejo é a redução não para 16, mas para 13 anos.

Excetuando-se a recente descriminalização, via STF, de aborto em caso de fetos com anencefalia (2012), a atual legislação sobre o assunto remete ao Código Penal de 1940, o mesmo que fixou a maioridade em 18 anos. De acordo com os senadores que protagonizam a PEC 33/2012, a lei que enseja a idade penal corrente seria anacrônica, o que configuraria uma justificativa para desprezar a tendência que se mostra, progressivamente, consenso entre os principais organismos internacionais – a de que os adolescentes estão em processo de desenvolvimento físico, moral e psicológico, devendo ser responsabilizados por um sistema de justiça próprio, que considere tais fatores em seu funcionamento.

O hipotético desalinhamento legal – que, pelo contrário, se mostra alinhado às tendências contemporâneas – parece não ser alavancado, por nenhum desses senadores, no caso do aborto. Todavia, em se tratando da situação feminina, essa conexão pode ser estabelecida com considerável facilidade, devido à tendência preponderantemente patriarcal da sociedade e, por consequência, do conteúdo do Direito à época da aprovação do documento de 1940.

Não há como esquecer que foi só no ano de 1932 que as mulheres brasileiras asseguraram o direito ao voto, finalmente adentrando no âmbito da cidadania então reconhecida aos homens. Segundo o Código Civil de 1916, por exemplo, as mulheres não podiam exercer profissão sem autorização do marido. Até o ano de 1962, a mulher casada era considerada relativamente incapaz para os atos da vida civil, sendo equiparada, nesse quesito, com os adolescentes entre 16 e 21 anos.

Em um cenário no qual as mulheres eram legalmente tuteladas pelos maridos nas questões mais elementares, não é de se surpreender que lhes fosse vetado o direito à escolha sobre a interrupção de uma eventual gravidez, principalmente se considerarmos que as decisões quanto ao curso da vida familiar eram exclusividade masculina. No contexto de uma sociedade paternalista, onde há centralidade na figura do patriarca (seja ele representado pelo pai, pelo marido ou pelo Estado), existe a suposição de que a mulher precisa ser necessariamente protegida, inclusive de si mesma.

Tal noção, alicerce do machismo, se faz explícita na proibição do aborto, dado que, nela, a mulher não é reconhecida como agente moral apto a tomar decisões inscritas no espaço de sua autonomia. No lugar disso, essas prerrogativas são transferidas aos “cuidados” do poder público, visto a suposta incapacidade feminina para a autodeterminação como ser humano, cujo útero se torna incubadora sujeita ao crivo coletivo.

Isso se dá, atualmente, pelo cerceamento do direito ao corpo através de uma moralidade que pretende consertar, conforme consta na proposta de emenda, presumido “grave atentado à dignidade da pessoa humana” do feto – como se obrigar uma mulher a levar uma gravidez indesejada até o fim, inclusive quando resultante da violência de um estupro ou mediante risco de vida, não fosse atentar frontalmente à sua dignidade.

Para os parlamentares que assinam ambas as PEC em questão, ou que se manifestam favoravelmente ao seu conteúdo, a importância da vida deve se limitar ao contexto intrauterino e ser encerrada no direito da mera sobrevivência durante a gestação. Dali em diante, ao que parece, a preocupação e a responsabilidade do Estado podem ser relativizadas – convivendo, concomitantemente, a noção de salvação absoluta do feto (via tutela feminina) e a abolição da proteção integral da criança e do adolescente já assegurada pelo ECA.

Pior do que isso, abre-se a brecha para que os jovens – que, proporcionalmente, são as maiores vítimas de violência no Brasil, e parcela ínfima de seus algozes – sejam enviados a prisões nas quais a superlotação é sistêmica, o controle por facções criminais é generalizado, e os índices de reincidência são altíssimos (estima-se, em média, 70% no sistema adulto, em contraste com cerca de 30% no sistema socioeducativo).

Evidentemente, jogados nesses lugares, onde a autoridade de policiais e de agentes penitenciários é pífia e onde a gestão do cotidiano é pautada por apenados dotados de poder e de influência, os adolescentes serão presas fáceis (e altamente lucrativas) na cooptação para as redes do crime reforçadas no cárcere. Além disso, a possibilidade de ressocialização – que já se mostra um engodo histórico nos presídios do país, mas que, apesar dos enormes pesares, ainda respira na socioeducação – será definitivamente sepultada.

A lição que fica é que, diferentemente das mulheres, que precisam ser controladas pelos poderes públicos, não devendo decidir sobre o curso de suas vidas (nem mesmo quando são vitimadas pela violência de um estupro ou quando correm risco iminente), certos adolescentes não precisam ser tutelados pelo Estado, devendo ser tratados como se fossem adultos.

Ao contrário da equiparação entre ambos, finda nos anos 60, e em movimento inverso ao que vem se desenhando até então, as PEC propõem uma adultização dos adolescentes e uma infantilização das mulheres.

Ambas as tendências correm lado a lado com a sacralização do processo de ser gestado, ainda que por quem não deseja a gestação, e até o momento em que não seja mais necessária a coação para mantê-la. A ironia é que, para muitos dos que querem assegurar tal imposição, a prerrogativa plena do direito à vida, da pretensa proteção integral e do acesso à dignidade deve ser abolida quando o feto se torna adolescente ou nasce mulher.

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Marcelli Cipriani é graduada em Sociologia e em Direito, e atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais. Pesquisa temas relacionados à violência urbana, com ênfase no fenômeno das facções criminais.  


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