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21 de outubro de 2017
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10:30

O caso de Tatiane: a mulher cujo marido matou seu filho e está presa por isso

Por
Sul 21
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Em um desses dias, quando Tatiane voltou de seu emprego em uma padaria, se deparou com o que seria mais uma etapa a compor o ciclo de traumas já tão comum à sua vida, remetendo-se à sua juventude, momento em que também passara por violência familiar: o corpo do bebê de 1 ano e 2 meses estava roxo, contendo inúmeros hematomas. (Imagem: Página “Liberdade para Tatiane” no Facebook/Reprodução)

Marcelli Cipriani

Tatiane da Silva Santos teve uma trajetória marcada por um sem fim de violências. Inserida em um contexto de vulnerabilidade social, sofreu abusos de seu companheiro durante anos, o que lhe rendeu marcas físicas e psicológicas profundas. Em 2013, foi também a violência que lhe arrancou um de seus filhos – assassinado pelo próprio marido, pai de Diogo. Tatiane, hoje, está presa no Madre Pelletier, cumprindo uma pena de quase 25 anos pelo homicídio e tortura da criança – a idade que tinha quando da ocorrência do fato.

Tatiane era casada com Amilton, que tinha problemas com abuso de drogas e, na época do fato, não desempenhava nenhum tipo de trabalho formal. Por isso, era ela quem sustentava as necessidades familiares, trabalhando durante todos os dias da semana. Diante desse contexto, os filhos do casal ficavam na escola de segunda a sexta-feira, e a mãe contratava terceiros para cuidar deles nos finais de semana. Na semana do crime, uma enfermidade fez com que Diogo, sob orientação de suas professoras, tivesse que ficar em casa. Amilton, que não costumava se interessar pelos cuidados do filho, se disponibilizou para ficar com ele, agindo carinhosamente e de maneira atenciosa com o menino.

Em um desses dias, quando Tatiane voltou de seu emprego em uma padaria, se deparou com o que seria mais uma etapa a compor o ciclo de traumas já tão comum à sua vida, remetendo-se à sua juventude, momento em que também passara por violência familiar: o corpo do bebê de 1 ano e 2 meses estava roxo, contendo inúmeros hematomas. Em face da cena descoberta, Amilton fugiu imediatamente. Tatiane chamou uma ambulância e, diante da demora, buscou auxílio na vizinhança, eventualmente conseguindo levar o filho ao hospital. Lá, foram identificadas graves lesões em vários de seus órgãos internos. Diogo não resistiu e, horas mais tarde, faleceu. Tatiane foi presa preventivamente, assim como Amilton.

Três anos depois, ambos foram submetidos a júri popular. A tese do Ministério Público se resumiu, em suma, à noção de que Tatiane também era responsável pelo delito, pois havia sido omissa, deixando seu filho sob a supervisão do pai, que já demonstrara, em situações anteriores, possuir um comportamento violento. Durante o julgamento, mulheres que, na plateia, acompanhavam o desenrolar do ocorrido em apoio a Tatiane, foram duramente intimidadas. Na argumentação da promotora, a então acusada foi humilhada por não ter se desvencilhado de seu companheiro – algo absolutamente corriqueiro em casos afins.

No ano passado, de acordo com dados do Datafolha, mais de 500 mulheres foram vítimas de agressões físicas a cada hora no Brasil, o que computou um total de 4,4 milhões de agressões apenas em 2016. A grande maioria desses agressores se tratou de um conhecido das vítimas, e a violência costumou ocorrer no ambiente do lar. Enquanto 11% das mulheres vitimadas procurou uma delegacia, 52% não tomou qualquer atitude – incluindo-se, aí, a comunicação à família ou aos amigos. A maioria das vítimas foi negra, o caso de Tatiane.

Os motivos para o silêncio não são diferentes dos enfrentados por ela: em geral, uma amálgama de medos, inseguranças e abandono. Não se levou em conta, ao longo da re-vitimização promovida pelo Estado, a informação sabida de que Tatiane já havia fugido de seu companheiro mais de uma vez, tendo sido coagida a recorrentemente voltar à situação conjugal. Também não pareceu relevante apontar que, assim como a grande maioria das vítimas de violência doméstica, ela sofrera várias de Amilton diante da possibilidade de fugir novamente.

De qualquer forma, ao menos uma dezena de ocorrências já haviam sido feitas contra seu marido, constando, dentre elas, violência doméstica e lesão corporal. Diante de uma dessas, resultante de agressão física cometida por ele, o casal foi a juízo com base na Lei Maria da Penha. Não houve nenhuma medida aplicada nessas situações, e optou-se pela tentativa de conciliação entre ambos (sob condição do compromisso verbal assumido por Amilton de que deixaria o uso de drogas).

Os motivos para o silêncio não são diferentes dos enfrentados por ela: em geral, uma amálgama de medos. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Não existem dúvidas, para nenhum dos envolvidos na condenação de Tatiane, de que Amilton foi o responsável pelo assassinato de seu filho, já que ela estava trabalhando (o que inclusive consta na denúncia do Ministério Público). Por sua vez, o afeto conferido pela mãe para com as crianças foi corroborado pelos testemunhos de sua avó, de seus vizinhos, da professora de Diogo e da assistente social que acompanhava seu caso. Essa última, em verdade, fez questão de destacar a precariedade no oferecimento de providências necessárias pela rede de apoio da região onde ela vivia.

Em suma, Tatiane foi condenada porque deveria, além de ser mãe, de sustentar sua família, de proteger-se de seu companheiro e de superar as vulnerabilidades a que estava sujeita, também ser capaz de antecipar o homicídio que viria a ser cometido por Amilton. O que chama a atenção, nessa demanda pública por sua capacidade premonitória, é que ela não pareceu ser cobrada dos próprios poderes públicos: nem dos policiais que recorrentemente atendiam às suas chamadas como vítima de violência, nem dos assistentes e conselheiros que conviviam com sua situação, nem do juízo que, quando o caso lhes chegou, encarou de bom grado a alternativa da audiência de conciliação entre o casal no lugar de outras possíveis.

Tatiane perdeu seu filho, perdeu sua liberdade, perdeu sua dignidade. Depois de agredida pelo marido, foi violentada pelo Estado – que, como se não bastasse, também autorizou a destituição de seu poder familiar. Assim, a mãe que trabalhava sete dias por semana para manter os filhos, que suportava um cotidiano permeado pela violência para protege-los (e a si própria) – deixou, em um só giro, de ser cidadã livre e de ser mãe: seus outros dois filhos estão, atualmente, em um abrigo aguardando por adoção. Também se encontram, portanto, pagando pelo crime do pai.

Ela, por sua vez, se encontra encarcerada, encarando uma pena de prisão do tamanho do tempo que – superando as tantas violências que já obstaculizaram seu caminho – viveu até então. Tatiane, enfim, é a prova: o horror da realidade supera o de qualquer ficção.

[Organizada pelo Facebook, a página “Liberdade para Tatiane” visa a visibilizar o caso, partilhar novas informações e divulgar medidas de auxílio a Tatiane. Como ela não possui condições de manter sua vida cotidiana no cárcere, estando submetida à precariedade típica ao sistema prisional, a página também está divulgando uma arrecadação financeira coletiva para auxiliá-la. Outra leitura sobre o caso pode ser acessada aqui]

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Marcelli Cipriani é graduada em Sociologia e em Direito, e atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais. Pesquisa temas relacionados à violência urbana, com ênfase no fenômeno das facções criminais.  

 


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