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23 de setembro de 2017
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15:55

As prisões do estado estão explodindo

Por
Sul 21
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As prisões do estado estão explodindo
As prisões do estado estão explodindo
O cenário atual do estado, que gera descontentamento tanto de apenados (pela insalubridade dos ambientes em que são colocados), quanto de policiais (que precisam se ocupar com a custódia improvisada, além de ficarem sob clima de tensão constante), vem atingido limites críticos. Foto: Luiz Silveira/Agência CNJ.

Marcelli Cipriani

De acordo com a Vara de Execuções Criminais (VEC), entre os anos de 2003 e 2017 o número de condenados no estado passou de 40 para 81 mil. A tendência, uma verdadeira bomba-relógio, não é exclusividade local: de 2003 a 2014, o país também dobrou seu contingente prisional. Segundo os dados mais recentes do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, todos os estados brasileiros têm população carcerária acima de suas capacidades. Em Rondônia, por exemplo, o índice de 2014 apontava uma superlotação de quase 300%. Na época, o Rio Grande do Sul foi considerado uma das unidades federativas menos críticas, ainda que atingindo 132%.

Entretanto, a situação “favorável” sul-rio-grandense não parece ter se mantido de lá para cá. Atualmente, as centenas de detentos da capital que não se encontram amontoados nos presídios – saturados com apenados oriundos tanto do regime fechado, quanto com aqueles que deveriam estar no semiaberto, mas não estão por falta de vagas – vêm sendo mantidos em lugares sem quaisquer condições para recebê-los: ônibus adaptados, viaturas policiais e delegacias (sendo inclusive mantidos presos junto às suas grades). No mês de novembro do ano passado, a imprensa já havia divulgado uma foto de dois indivíduos, na frente do Palácio da Polícia, algemados em uma lixeira, dada a ausência de espaço para alocá-los.

Não há, diante disso, como contornar o fato de que o Estado é incapaz de lidar com o uso desenfreado que faz da prisão – que é aplicada, na maioria dos casos, para os delitos de furto, roubo e tráfico de drogas, com a cooptação em massa de indivíduos pouco influentes nas redes das substâncias ilícitas, que avançam sistematicamente e com cada vez mais brutalidade pelos municípios. Os detidos por homicídio, por sua vez, são pouco expressivos, e a Polícia Civil (a quem cabe a exclusividade das investigações criminais) é responsável por uma parcela igualmente baixa dos aprisionamentos.

O cenário atual do estado, que gera descontentamento tanto de apenados (pela insalubridade dos ambientes em que são colocados), quanto de policiais (que precisam se ocupar com a custódia improvisada, além de ficarem sob clima de tensão constante), vem atingido limites críticos. E, ao que parece, a estratégia principal da Secretaria de Segurança Pública tem sido a ampliação de vagas mediante construção de novas galerias e de Centros de Triagem. Já são dois os blocos levantados nos últimos seis meses, e pretende-se erguer outros. Eles são destinados a presos provisórios, que ainda não foram julgados e nem condenados pelo sistema de justiça. Apesar de as prisões provisórias terem sido criadas como mecanismo de exceção, elas costumam ser banalizadas e são aplicadas desproporcionalmente, o que agrava sobremaneira a crise carcerária.

E, ao que parece, a estratégia principal da Secretaria de Segurança Pública tem sido a ampliação de vagas mediante construção de novas galerias e de Centros de Triagem. Foto: Maia Rubim/Sul21

Em que pese os Centros de Triagem auxiliarem (ainda que de forma precária) o desafogamento emergencial do sistema, não existe concreto no mundo que dê conta do ritmo de condenações protagonizado pelo Rio Grande do Sul: segundo o juiz da VEC, foram mais de 8 mil só no último ano, havendo a projeção de ao menos 10.000 para 2017. As prisões do estado estão explodindo, e não há mais como sustentar, de forma honesta, o argumento de que punimos pouco: para além do caos sul-rio-grandense, o Brasil é o quarto país que mais aprisiona no mundo. Pior do que isso, age na contramão dos outros três que seguem em sua frente – que vêm reduzindo suas taxas de encarceramento – e insiste em depositar (com o aval de parte considerável da sociedade) a solução dos problemas sociais e o fim da violência na conta do sistema carcerário.

Evidentemente, a prisão não se presta a essas finalidades, já que é apenas uma entre a gama de mecanismos de controle social que existem na vida coletiva e que deveriam, a seu turno, estar desempenhando suas funções, com o cárcere sendo a última opção disponível. Ao contrário do que muitos esperam, como o Estado não é capaz de manter e acompanhar as dinâmicas da população carcerária – pois os recursos são insuficientes, as estruturas são precárias e o efetivo de funcionários é proporcionalmente baixo – o controle dos presídios se dá, na prática, pelos membros de facções criminais, o que os torna não só inócuos na redução da criminalidade, mas faz com que operem como seu agravante.

No caso do Rio Grande do Sul, o clichê “escola do crime” se soma com a noção de “escravidão pelo crime”, pois o cárcere força laços entre os membros grupos criminais – no comando de grande parte das galerias prisionais – e os apenados que, inicialmente, não se encontravam envolvidos com eles, mas que precisam garantir sua sobrevivência e integridade física em locais onde não é a polícia que as mantêm, mas os demais presos. Assim é que se torna urgente abrirmos mão de nossas eventuais concepções pessoais sobre as estratégias punitivas usadas até, e começarmos a perceber os resultados nefastos que nossas formas de lidar com o controle do crime têm produzido.

A partir desse balanço, é necessário que orientemos as políticas prisionais e de segurança tendo em vista a realidade concreta e suas possibilidades, dentro da legalidade e do respeito às suas garantias, e não a partir do campo do “dever ser” próprio a cada um, que não serve como régua para o agir público, fixado dentro de um Estado democrático de direito. Apesar da comum impopularidade de assertivas como esta, é preciso que encaremos, definitivamente, que o sistema prisional não serve para aniquilar aqueles que tomamos como inimigos, tampouco tem funcionado para reparar delitos ou prevenir que eles voltem a ocorrer.

No Brasil, a Segurança Pública vem sendo tradicionalmente desprezada por todos os diferentes governos e governantes e, mesmo quando orientada segundo boas intenções, esbarra na Realpolitik, nos interesses eleitoreiros ou na eterna prática de “enxugar o gelo” – que já deixa custos altíssimos à população e que se mostra cada vez mais insuficiente.

O resultado disso são medidas pensadas de forma meramente reativa, imediatista e com eficácia de curto prazo (como os Centros de Triagem), com pouco ou nenhum planejamento e avaliação, e que deixam intactos os altos índices de assassinatos, vitimando em especial os jovens moradores de periferias, mas transbordando para todo o corpo social.

Trazer essa questão ao debate não significa defender o fim imediato das prisões ou a ausência de responsabilização daqueles que cometeram delitos, mas demarcar que pensá-las como instrumentos de redução e prevenção da violência é uma ilusão, já que o aumento progressivo do aprisionamento no Brasil foi acompanhado da escalada dos homicídios, da proliferação de facções criminais e do espraiamento das dinâmicas delituosas. O encarceramento vem sendo usado como mecanismo principal no controle do crime há décadas, e tem falido tragicamente em seus objetivos.

Persistir teimosamente nesse equívoco histórico, desprezar medidas alternativas de punição, deixar de investir em iniciativas preventivas, privilegiar os flagrantes da Polícia Militar no lugar das investigações da Polícia Civil e vetar a reflexão sobre mudanças estruturais (como quanto à política de drogas, temática obstada por um moralismo que desconsidera qualquer evidência flagrante), significa corroborar com o fato de que as prisões estão explodindo, e ignorar que o reforço a essa lógica simplesmente não é um caminho viável. Significa, também, aceitar que o cárcere seguirá, de forma cíclica, retroalimentando o crime e a violência, que não deixarão de retornar contra todos nós.

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Marcelli Cipriani é graduada em Sociologia e em Direito, e atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais. Pesquisa temas relacionados à violência urbana, com ênfase no fenômeno das facções criminais.  


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