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26 de março de 2017
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10:29

O Fantasma do Alvorada

Por
Sul 21
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Por Luiz Antonio Timm Grassi

Ao caminhar, uma noite destas, pela selva escura da Praça da Matriz, defrontei-me com um vulto sombrio e logo o medo me dominou. Logo pensei em assalto, mas o vulto aproximou-se e, tomando coragem, perguntei: “quem vem lá?”. A figura respondeu: “Não sou mais gente; já fui e agora ando por aí, contando minha história”. Mesmo com medo, continuei a ouvi-lo e ele narrou o que segue.

“Sou um fantasma palaciano, já não sei desde quando. Vivi muito tempo no Catete, quando os presidentes lá moravam. Tentei inspirar o Getúlio a fazer a verdadeira revolução do Brasil, mas havia muitos outros fantasmas no Palácio e tudo acabou como todos sabem. Com o Presidente Bossa Nova, fiquei entusiasmado pelos “cinqüenta anos em cinco”, pensando que, finalmente, podia começar a ser construído um projeto para o país. Veio a mudança da capital e lá fui eu, bem contente para Brasília, acreditando que os velhos fantasmas ficariam na velha capital. Desde então moro (não confundas como Moro) no Alvorada. Parecia-me que o Brasil ia tomar jeito, mesmo de uma forma canhestra, mas com uma vontade firme de ser uma verdadeira nação. O início dos anos sessenta me deixaram animado, pois havia uma bela agitação criativa, principalmente por parte dos estudantes e dos intelectuais. Mas a eleição do senhor Vassoura trouxe uma incerteza muito grande. Então, quando Janio renunciou falando em forças ocultas, ninguém entendeu muito, mas lá estava eu, fazendo minha parte fantasmagórica, assustando-o até a renúncia. Só que as verdadeiras forças não ocultas não deixaram que acontecesse o que eu queria provocar: a posse tranquila do Jango e novos rumos para o país. Veio o golpe e até eu, que devia assustar os outro, fiquei com medo. Na triste noite que durou vinte e um anos, tive de esconder-me em vários desvãos do Alvorada, tal era a horda de fantasmas terríveis que foram para lá, entre eles o da censura, o das perseguições, vários das torturas e dos assassinatos. É preciso dizer que nós, que habitamos o Alvorada ou outros palácios, não ficamos só dentro da nossa morada, mas vivemos andando por todas as partes. Os fantasmas da ditadura conseguiram se insinuar por todo o pais e até foram muito bem recebidos por muitas pessoas e em muitas instituições (a começar pelo parlamento). Quando ninguém mais aguentava a assombrosa ditadura e seus fantasmas já estavam cansados, veio a “abertura lenta e gradual”, inspirada por fantasmas muito espertos que queriam continuar a assombrar após a ditadura. Assisti, contristado, o que se passou depois, as indiretas e tudo o que resultou no governo Sarney. É verdade que a mobilização da Constituinte me entusiasmou e o fantasma da Constituição (um dos melhores que já encontrei) fez um bom trabalho, apesar de muitas assombrações metidas no meio. Após as primeiras eleições diretas, foram fantasmas colloridos que assombraram o país. Mas o eleito nem quis morar no Alvorada e fiquei solitário enquanto alguns colegas frequentavam as festas da Dinda (mas nem eram percebidos, tal era o clima fantasmagórico daquelas bandas). Enquanto isso, a tal “abertura para a globalização” trouxe junto com a enxurrada de importados um enxame de fantasmas globais (obviamente com interesses avessos aos nacionais). Pensei que com o impeachment, que achei justo (embora outros interesses possam tê-lo provocado), o país ia achar seu rumo. Mas, depois das eleições, o novo e aristocrático residente do Alvorada me decepcionou. Queria me distrair lendo seus afamados livros, mas não achei nenhum no Palácio, ele os tinha esquecido. E o Presidente nem se incomodou com minhas assombrações querendo lembrá-lo de suas antigas idéias. Cada vez que eu me manifestava, ele pensava que era o som dos próprios pensamentos. Andei pelo país preocupado com a horda de fantasminhas neoliberais que iam entrando e se instalando, provocando compras de estatais aqui e ali, desmontando a máquina pública. E fiquei abismado quando assisti a compra de votos para a emenda da reeleição. Assisti à “estabilização” da economia, às custas de uma política econômica que quase nos levou à breca. Então veio a primeira eleição do Lula. Mais uma vez fiquei entusiasmado com as políticas sociais, com um movimento inédito de inclusão e com o cumprimento de uma promessa eleitoral (coisa rara), de criação de milhões de empregos. Resolvi deixar o Presidente e sua esposa dormirem tranquilos e fui rodar pelo país. Conferi a veracidade dos resultados das políticas sociais, mas fiquei preocupado que, ao mesmo tempo, o nível de politização da sociedade continuava baixíssimo, incentivado pelo circo da grande mídia (novelas, futebol, carnaval e etc). Mais preocupado fiquei quando percebi que ganhava terreno a exploração de seitas que prometiam a salvação pelo dinheiro (enquanto embolsavam os dízimos e organizavam-se politicamente). Ao mesmo tempo, visitando o Banco Central e outros meandros das finanças, verifiquei que a vida econômica continuava sob o poder dos grupos financeiros, como se houvessem dois governos, um político e outro econômico. E fiquei assustado ao ver muitos fantasmas da corrupção organicamente inseridos nesses processos econômico-financeiros. Alguns desses fantasmas cochichavam conselhos maldosos a membros do governo, dizendo para fazerem o mesmo jogo que era feito há muito tempo, sob o pretexto de que os fins nobres justificam os meios podres. Claro que meus colegas perversos sabiam que os políticos conservadores e os empresários gananciosos conhecem muito mais essas tramóias e os governistas é que seriam enredados. Foi bem o que o mensalão provou, com todas as pompas e novas teorias jurídicas oportunamente usadas e depois esquecidas. Mesmo assim, continuavam as conquistas sociais, deixando-me contente e fazendo-me esquecer das ameaças assombrosas que iam amadurecendo. A gota de satisfação que faltava não foi de água, mas de óleo do pré-sal. Parecia que o grande fantasma da autodepreciação começava a ser vencido por essa conquista tecnológico-econômica autenticamente nacional, que se acrescentava a uma presença forte e lúcida do Brasil no plano internacional. Quando a Presidenta veio morar no Alvorada, continuei observando sem intervir, até um pouco preocupado com o perfil sério da nova titular. Tentei dar alguns sinais para que ela se precavesse contra algumas pessoas, mas não tive sucesso. Observei as maquinações e as traições cada vez maiores e a Presidenta cada vez mais com as mãos amarradas, até o golpe final. Fiquei triste com sua saída do Palácio, mas o que pode fazer um velho fantasma, decepcionado com as multidões que alegremente se dispunham a pagar todos os patos sem se dar conta de que cavavam a sepultura de uma nação. Então o Alvorada começou-se a preparar para receber seus novos moradores. Muita gente acha que a reforma foi feita por um arquiteto da Transilvânia para trocar as cortinas e não deixar entrar mais os “raios fúlgidos” do “sol da liberdade”. Enfim, veio o novo usurpa-morador, enquanto eu observava nuvens cada vez mais escuras tomando conta do país. Verifiquei, nas minhas andanças, que aquelas assombrações dos anos de ditadura começavam a por suas cabeças para fora. Repressão manifestada nas escolas e universidades, em decisões e determinações de órgãos governamentais, em decretos e leis, processos e prisões e até mesmo através de gás lacrimogênio, bombas e ataques físicos começaram a se tornar freqüentes. Vi muitos dos fantasmas maléficos rindo daqueles que se prestaram a preparar esse ambiente, em nome da “luta contra a corrupção” (endossada por corruptos, enquanto não atingidos). Mas também vi muita gente deixando vir à tona seus ressentimentos e principalmente seus interesses que entenderam feridos pelas políticas de inclusão social. Pensei com meus invisíveis botões o quanto essa elite que pensa estar retomando seus “direitos exclusivos” é néscia, porque, na verdade, está a serviço de muito poucos e entregando dedos e anéis para interesses estrangeiros. Lembrei, constrangido, que a esse ponto não chegaram os donos da ditadura, pois ao menos tinham o cuidado de não ferir os interesses nacionais. Comecei a ficar tão depressivo que cheguei a pensar em deixar o país. Mas as notícias lá de fora também não são nada boas. Parece que o fantasma da Casa Branca vai ser obrigado a ir embora, pois o atual Presidente não acredita que ele tenha nascido nos Estados Unidos…Enfim, concluí que o mundo não está para boas fantasmagorias. Mas voltando ao Alvorada, resolvi tomar partido ativamente de um grande movimento que vi nas ruas (embora quase nada apareça nos jornais e nas televisões). Ouvi, em todas as praças e avenidas do Brasil a mesma frase. Não acredito que ela, sozinha expresse a complexidade do que o país vive, nem que resuma um programa de superação dessa crise assombrosa. Na verdade, se eu pudesse dar uma fantástica contribuição, diria que, muito alem do jardim da corrupção a ter as ervas daninhas extirpadas, é preciso plantar as sementes de um projeto nacional (recuperando, antes ou ao mesmo tempo, o que tinha sido conquistado e está sendo destruído). Muitos dizem que isso levará muito tempo, esse dito não pode servir de consolo ou desculpa para deixar passar esse tempo, enquanto o país é destruído e vendido. Já falei com fantasmas muito mais velhos e experientes e eles sempre dizem que essas recuperações ou reformas ou revoluções são sempre difíceis e exigem muito de muitas gerações (simultaneamente, não umas a esperar as anteriores). Mas, novamente, voltando ao Alvorada e às vozes, aos cantos e aos gritos que ouvi nas ruas de todo o país, resolvi, também eu entoar o mesmo refrão. E comecei a berrar pelo Palácio da Alvorada: FORA TEMER. E ele foi embora…”

A essas alturas, o sol já tinha saído e muita gente chegava para mais uma manifestação na Praça. Fiquei pensando se um dia encontraria, também, o Fantasma do Piratini…

.oOo.

Luiz Antonio T. Grassi é engenheiro civil com especialização em planejamento metropolitano e atuação na área de saneamento e gestão de recursos hídricos. É um dos autores do livro “Tempo das Águas”. Bacharel em Hiistória, com especialização em América Latina, tendo lecionado na Faculdade Porto-alegrense de Filosofia, Ciências e Letras.


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