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23 de fevereiro de 2017
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09:30

Água para as privadas

Por
Sul 21
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Por Luiz Antonio Timm Grassi

A voz popular acostumou-se a chamar “privada” aquilo que os arquitetos e engenheiros designam por bacia sanitária (e até mesmo o espaço onde esse equipamento é instalado). Obvio que esse nome tem relação como a atividade estritamente privada que ali se realiza.

Eis que se desenvolve, no país, uma campanha bem organizada para que o abastecimento de água potável, serviço essencial para a cidadania, deixe de ser prestado por entes governamentais e seja privatizado, ou seja, entregue a empresas privadas. Sem querer forçar a analogia terminológica, não posso deixar de lembrar que o nome privada originalmente designava um buraco no chão, mais ou menos complementado por um banco de madeira com um orifício no centro, dentro de uma casinha (também se dizia “vou à casinha…”). Nessa época ou onde ainda não há serviços públicos, a água era obtida individualmente, potável ou não e os dejetos depositados na privada também eram tratados individualmente (geralmente, quando uma privada estava saturada, a família escavava outro buraco e deslocava a casinha).

Coincidentemente, mas não por acaso, nos lugares ou regiões onde havia (ou há) esse tipo de “saneamento”, vicejavam (ou vicejam) vários tipos de doenças, seja pela ingestão e aproveitamento de água imprópria, seja pela disposição dos dejetos, contaminando o solo e propiciando a proliferação de vetores de doenças.

O verdadeiro saneamento, que inclui a disponibilidade de água potável, e a correta disposição dos dejetos e resíduos orgânicos ou não, é um do mais notáveis marcos civilizatórios e, na sua origem, vinculado indissociavelmente à manutenção e melhoria da saúde.

Nosso país tem uma longa história daquilo que os meios técnicos passaram a chamar de “saneamento básico” (abastecimento de água, esgotamento sanitário, disposição de resíduos sólidos e também a drenagem urbana das águas da chuva. Desde o início do século passado, o poder público foi criando estruturas para a prestação desse serviço. No RS, a maioria das cidades passou a contar com abastecimento de água (e algumas com serviço de esgotamento sanitário) por iniciativa do governo estadual.Em poucas, entre elas a capital, esses serviços ficaram por conta das prefeituras (no caso de Porto Alegre, com um organismo autárquico, o DMAE, criado no início dos anos 60). No final de 1966, o governo estadual criou, pioneiramente no país, uma empresa de economia mista (na prática, uma empresa pública), a CORSAN. Pouco depois, todos os outros estados foram compelidos a criar suas companhias estaduais para poder receber recursos do Plano Nacional de Saneamento (PLANASA).

A narrativa histórica só tem importância para mostrar que o Estado (poder público em suas instâncias, federal, estadual e municipal) estiveram presentes na implantação dos serviços de saneamento que a própria Constituição de 88, no seu artigo 247 consagra como “serviço público essencial” e “atividade preventiva de ações de saúde e meio ambiente”. Vincula, inclusive, ao Sistema Único de Saúde, na formulação da política e do planejamento setoriais.

E agora, vem a investida da privatização. Desde os anos 90, alguns municípios com serviços desvinculados das companhias estaduais, vinham entregando à iniciativa privada o abastecimento de água. Naturalmente, as empresas privadas só demonstram interesse naqueles serviços altamente rentáveis, pois sua meta é o lucro e não a saúde pública. Pequenas cidades ou aquelas onde haja dificuldades com os mananciais nunca serão alvo das privadas. Cobre-se o que for necessário para garantir a “sustentabilidade econômica” (leia-se lucro) e dane-se o interesse da população.

A administração tucana de São Paulo foi precursora da entrega das companhias estaduais às privadas, com a abertura do capital da empresa estadual de saneamento, SABESP, em 2002. Hoje, 49,7 % das ações da empresa estão nas mãos de acionistas privados (e eles ficaram com 29,7 % do lucro líquido dos serviços, enquanto os projetos que evitariam a crise da água de 2014 não foram levados adiante). A hoje tão falada Odebrecht, através da subsidiária Aquapolo tem uma parceria com a SABESP para a produção de água potável pelo tratamento de esgoto. Essa mesma empresa é, possivelmente a principal privada a atender diversas cidades do Brasil (incluída a cidade de Uruguaiana), através da Odebrecht Ambiental.

A privatização, até aqui, tem investido na conquista de serviços atendidos por municípios. A interpretação ambígua da Constituição que atribui exclusivamente ao poder municipal a titularidade do serviço de abastecimento público, embora atenuada pela Lei Federal 14.445, de 2007, tem permitido que, pouco a pouco, as empresas estaduais de saneamento percam o atendimento das cidades mais rentáveis. Nesse passo, o controle estadual ficaria apenas com as cidades desprezadas pelas privadas.

Eis que chegamos a um novo patamar: na onda de retrocessos institucionais e políticos que vem desde o golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016, chega a vez da água. É preciso que se deixe bem claro que, por enquanto, se trata “apenas” do serviço de abastecimento de água potável e, por decorrência das funções das empresas públicas estaduais, também do esgotamento sanitário. Por enquanto (até quando) os mananciais de água da natureza estão protegidos da apropriação privada pela Constituição Federal. Até quando?…

Como parte da chantagem que o governo (?) federal faz com os estados em crise fiscal, coloca-se a entrega da água para as privadas. A CEDAE do Rio de Janeiro é a primeira. A CORSAN ainda está escudada em dispositivo constitucional que a protege pela exigência de um plebiscito. Até quando?

É preciso que se diga que a experiência de alguns países não favorece o serviço privado da água. Nos Estados Unidos, a grande maioria desses serviços é prestado por organismos públicos. Na França, berço da duas grandes privadas, depois de um avanço grande da privatização, houve recuo significativo nos últimos anos, inclusive em cidades grandes, a começar por Paris, que re-plublicizou o serviço. Para ficarmos em países vizinhos, o caso da Bolívia é emblemático, com a “guerra da água” que expulsou a empresa privada de Cochabamba com verdadeira insurreição popular. Com menor virulência, também Buenos Aires rechaçou a privatização.

Mas agora é a vez da água, no Brasil. O pré-sal já foi atingido, o ensino também, a política ambiental já está sendo adequada, a engenharia e a tecnologia nacional estão sob ataque, a cultura espezinhada, a livre expressão vendo a volta da censura, porque a água ficaria de fora? É importante que se veja essa questão em uma perspectiva de conjunto. Não se trata apenas de privatizar, mas de possibilitar e entrada dos grandes grupos estrangeiros. Depois da água o que virá? Já está na mesa a venda de terras para estrangeiros. Estamos todos à venda. Voltaremos às privadas?

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Luiz Antonio Timm Grassi é engenheiro e bacharel em História.


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