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14 de janeiro de 2015
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10:28

Registros de um grande momento

Por
Sul 21
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Por Luiz Antonio Timm Grassi

07 de janeiro

1. Comoção em Paris pelo atentado ao jornal satírico Charles Hebdo, por terroristas. É preciso condenar e combater a barbárie, todo o tipo de barbárie, religiosa, racial, econômica, política. É preciso combater as fontes e as origens da barbárie: as dominações, as intervenções militares, o fanatismo religioso (de todas as religiões).

O atentado foi a poucas quadras de nosso apartamento e nos sentimos solidários com as vítimas e com o povo da cidade que nos acolhe. Paris e o mundo não merecem esse tipo de acontecimento.

Acreditemos que um outro mundo ainda é possível!

2. Manifestação na Place de la République de repúdio contra o atentado, de dor pelas vítimas e a favor da liberdade de expressão.

Milhares e milhares de pessoas chegando desde o final da tarde. Convocada por uma associação de jornalistas, de forma improvisada, sem lideranças visíveis, sem partidos distinguíveis, sem palavras de ordem,sem aparato de som. De tanto em tanto, vagas de palmas ou grito uníssono “Charlie, Charlie”. Mais perplexidade do que emoção, vontade de estar presente apenas para estar junto na multidão. Cartazes improvisados.De quando em quando, gritos “Je suis Charles”. Nenhuma manifestação (ao menos não vi ou ouvi) de ódio, de acusação. Também não lágrimas. Um sentimento pesado, contido, seco. Mas seriedade geral, como se todos estivessem (como estavam) cumprindo um dever fúnebre. Como se todos esperassem alguma cerimônia, mas sabendo que não haveria. E as velas começaram a ser acesas e colocadas no monumento à República, como em uma liturgia leiga, iluminada. Pequenas luzes contra a barbárie, multidão sombria mas emanando a claridade da razão e da solidariedade..

08 de janeiro

3. O dia seguinte ao atentado – Nova reunião espontânea (ou quase) na Place de la République. Muito silêncio, considerando-se a multidão. É, ainda, antes de tudo, um ato fúnebre. Em alguns pontos, o mesmo tipo de manifestação que ocorre em situações similares (mortes marcantes, como a de Lennon): velas, círculo de pessoas em silêncio, rezando ou não. Junto ao Monumento à República, grande grupo manifesta-se, de tanto em tanto,principalmente defendendo a liberdade de expressão. Cada vez mais cartazes. A leitura política da manifestação é que se concentra na defesa dos valores republicanos caros aos franceses: laicismo, liberdade de expressão, defesa das alteridades. Novamente, cuidado em evitar o acirramento do ódio. Ao menos essa é a impressão que fica.

Considero o melhor cartaz o que diz “JE SUIS NOIR… BLANCHE… HOMO… MUSULMAN…JUIF… CATHOLIQUE…JE SUIS CHARLIE” E poderia dizer “Eu sou mulher, criança, velho, índio, latino-americano, africano, sem-teto, sem emprego, sem terra, budista, ateu etc etc…Eu sou humano”

09 de janeiro

4. O Atentado – É difícil pensar em outra coisa quando se ouve a sirene da polícia a toda hora na rua em frente; a TV tem intermináveis programas, ora noticiando, ora reconstituindo ou então com entrevistas interpretativas (e os franceses são mestres em “análises”…). E os jornais só falam nisso. Mas,,, PARIS CONTINUA ! “On ne peut se rendre aux ‘hommes’ “… (em gauchês: “não podemos s’entregar pros home!”) La Vie continue. VIVE LA VIE ! Amanhã, estaremos na grande manif, pelos direitos humanos, contra todas as barbáries. Solidarité !

11 de janeiro

1. Preparando a manifestação, visitamos, no Museu Carnavalet (museu da cidade) uma expo de fotos e vídeos sobre a ocupação e a libertação de Paris. Impressionante, emocionante! Mais de quatro anos sob a dominação nazista, depois a insurreição com milhares de participantes, adultos (as), crianças. Fuzilamentos, torturas. E a libertação, basicamente pelos próprios parisienses. E recém liberada a cidade, JÁ FAZIAM UMA EXPOSIÇÃO FOTOGRÁFICA SOBRE A LIBERAÇÃO. Bem parisienses… A expo de agora refaz a anterior, 70 anos depois. Com acréscimos (revelando, p.ex. que os estadunidenses não deixaram que aparecessem os negros do seu exército!). Fotógrafos como Cartier-Bresson, Capa, Doisneau, com fotos da insurreição, da libertação e das festas (a grande manif, talvez proporcionalmente maior que a de hoje, em relação à população).

A MANIF

(voltando da manif) Mme Le pena ficou de fora.. ! Estou preparando as fotos e as impressões sobre a marcha. Fantastique! acho queo efeito será positivo. Pelo menos no milhão e meio de pessoas, nenhum ranço xenófobo, islamófobo, ao contrário !

2. EMOCIONANTE participar de um acontecimento como esse !!! Desde o início da tarde (de um dia inesperadamente lindo no inverno parisiense) milhares chegando de todas as partes. A Place de la République logo fica inacessível. Quando a marcha começa, desloca-se por diversas ruas e avenidas em direção à Bastille e depois à Place de la Nation. Não há líderes ou condutores aparentes. Apenas um grito: “Charlie!”, palmas e a Marseillaise, que se repetem em vagas, surgindo de um ponto ou outro. Outro grito: “Liberté !”. A(s) mensagem(ns) está(ão) nos cartazes, nas roupas, nas testas… Solidariedade, tolerância, repúdio aos extremismos, defesa da laicidade… Nada de xenofobismo, de islamofobismo. A extrema direita ficou de fora, felizmente. (segue…)

3. Acho que “Je suis Charlie” já não é mais uma identificação solidária que condena um ato bárbaro. Não cabe discutir os méritos ou deméritos dos jornalistas ou da publicação. Existe a atitude de extrema humanidade de lamentar a perda de vidas, mas, a partir da condenação da violência, vem à tona todo o contexto (complexo) do acontecimento. Quem sabe começar pensando na deturpação do sentimento religioso e no seu uso político? O fanatismo e sua manipulação estarão no cerne de todas as religiões? Religião e poder é uma mistura que leva ao totalitarismo? É possível uma democracia sem um Estado laico? E até que ponto temos Estados laicos? E o fanatismo não é a discriminação (a recusa das alteridades) em seu grau extremo? Qual a diferença da AlQaida ou do E.I. do Tea Party, das extremas direitas, do estalinismo, do nazismo, das segregações raciais ou de gênero ? E a dominação econômica das finanças não é um totalitarismo, também?
Na manif podia-se refletir sobre tudo isso, observando-se os cartazes. Um discurso , anárquico, impreciso, mas com certa coerência. (continua…)

4. O “discurso da manif” não estava apenas nos cartazes.Tudo o que aconteceu nos últimos dias NÃO ACONTECEU EM PARIS !!! ACONTECEU NO MUNDO !!! No mundo em que as “grandes potências” engendraram um sistema de dominação que deu origem, entre outras coisas, a um “oriente médio” repartido desde o momento em que o capitalismo começou a tornar-se global. Um “oriente médio” disputado até hoje, sem nenhuma piedade ou respeito seus povos e culturas. O capítulo Bush e suas guerras desvairadas é apenas mais um. O sacrifício da ocidentalização forçada do Irã (tempo do Xá) e sua purgação pelo fundamentalismo dos aiatolás foi outro. A “primavera” (ou “in-f-erno) da Líbia ou ea pobre Síria ou outono (ou purgatório) egípcio são outras manifestações da delicadesa com que as “potências” disputam o petróleo ou a hegemonia geopolítica. Vi tudo isso na manif. Comovente a presença dos curdos. E quem lembrou dos armênios?

Alguém dizia na TV (os franceses sempre pensam bastante) “A SOLUÇÃO NÃO ESTÁ NA GUERRA AO TERROR !” Os “terroristas” brotarão por todas as partes enquanto os Terroristas do complexo militar-industrial-financeiro continuarem a controlar tudo (inclusive as comunicações) (continua)

5. “O discurso da manif”:se a guerra ao terror não é a solução, qual será? A manif é um milhão de cabeças animadas, mas desencontradas. Um milhão de respostas, mas uma torrente sem rumo. Pistas: respeito às diferenças, tolerância, convivência, paz, liberdade… Mudanças culturais, sem as quais qualquer mudança ou revolução engendrará outras dominações. Mas mudanças culturais que não terão frutos sem as bases políticas e econômicas. A manif mal chega a esse discurso. Talvez balbucie. (segue)

6. Mas a manif faz parte da “sociedade do espetáculo”. E da “era da imagem”. Todos figurantes. Sem desmerecer o “discurso”, a manif “selfissiza-se” em dez, cem milhões de imagens. E segue depois, na sua vida digital, na TV, na internet. Em Paris, haverá, algum dia, uma exposição dedicada à Manif de 11/01/15… (segueFinal da manif: a multidão já rumou para a Bastille, para Nation. As autoridades francesas e estrangeiras terão outras cerimônias, discursos etc.

7. Na Place de le République, ainda uma pequena multidão. Os jovens, estudantes ou não, “tomaram” o monumento à República. Dele fazem seu micro “maio de 68”. Gritam, cantam, aclamam, há palavras de ordem (“somos todos palestinos”…), agitam-se, acendem uma chama. Quantos deles terão na manif o dia do seu destino? O crepúsculo da manif é belo!

Seguem fotos do autor.

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Luiz Antonio Timm Grassi é engenheiro civil com especialização em planejamento metropolitano e atuação na área de saneamento e gestão de recursos hídricos. É um dos autores do livro “Tempo das Águas”. Bacharel em Hiistória, com especialização em América Latina, tendo lecionado na Faculdade Porto-alegrense de Filosofia, Ciências e Letras.


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