Colunas>Lélia Almeida
|
20 de julho de 2019
|
11:31

A pessoa com quem você está falando não existe

Por
Sul 21
[email protected]
A pessoa com quem você está falando não existe
A pessoa com quem você está falando não existe
Arte de Mel Bochner, ‘Blah, Blah, Blah,’ 2011-2012.

Lélia Almeida (*)

Para que você consiga se relacionar com as pessoas, nos dias atuais, é imprescindível que você compreenda como a outra pessoa se relaciona com o seu próprio celular onde ela acessa o Face, o Wats, o Insta ou o Twitter. Se você não compreender como ela se relaciona com este aparelho que pulsa e vibra entre as mãos, a dinâmica da comunicação estará completamente comprometida. E este comprometimento tem aniquilado com a possibilidade de qualquer tipo de conversa que é a nossa única possibilidade de nos relacionarmos, humanamente, com os outros.

Compreender como o outro se relaciona com este aparelho que agora domina seus gestos, condutas, sentimentos e atitudes é uma condição de sobrevivência entre os grupos e as pessoas. Estar ou não estar nos grupos do Wats diz muito de você e, quase sempre, não estar, é muito esquisito. Responder prontamente a todas as demandas enviadas pelos diversos membros dos grupos, estar atualizado com os emojis é, também, indicativo de uma espécie de saúde, normalidade e pertencimento a uma comunidade que já criou os seus protocolos de bons- tons.

Para além desta interação compulsiva, quando as pessoas estão separadas ou distantes fisicamente, há também novas regras que mediam o comportamento das pessoas quando elas estão juntas na vida real. Como quando estão numa janta, por exemplo, na casa de um amigo e alguém, em algum momento tira da bolsa o celular e se conecta para além do mundo real e escapuli para o mundo virtual sem a menor falta de cerimônia, o que é repetido por todos, em pacto silencioso e autorizado. Neste momento instalou-se entre as pessoas a angústia de elas estarem juntas, um desconforto, e elas precisam, então, se retirar para relaxar, para despressurizar do excesso humano dos olhares, dos sons, dos sorrisos, das risadas, dos gemidos e dos silêncios.

Como se fosse autorizado e permitido agir assim com o outro: vou até ali descansar um pouco da angústia de ter de estar com você e já volto. E todos partem para os seus adentros ignorando a presença dos seus pares físicos e das pessoas que ali habitam. Quase como se nos esparramássemos no sofá mais próximo, na nossa própria cadeira ou sobre a mesa a e nos masturbássemos relaxadamente ignorando as pessoas que estão ali, elas também, esquecidas de nós. Ou como se interrompêssemos a refeição e déssemos uma substancial vomitada para nos aliviarmos do peso do outro.

Esta auto retirada da cena real para o refúgio virtual quer apaziguar em alguma medida tudo o que requer de atenção e subjetividade o estar com o outro, o estar implicado com o movimento, a loucura e o afeto de estar no outro, que clama pela nossa permanência, aqui e agora.

Não damos mais conta disto, de estar afetados, de estarmos no afeto, e estes aparelhos que vibram em nossas mãos funcionam também como uma blindagem social que nos preserva do contato real com as gentes e que, ao mesmo tempo, nos convence e faz crer que é não estando próximos que estamos juntos, através dessas frágeis redes que cada vez se sustentam menos. Não queremos estar de mãos dadas com todo mundo, não queremos estar de mãos dadas com qualquer um, assim é, na vida real, a única que existe e onde estamos cada vez mais sós e isolados.

Nisto estamos, nesta armadilha que nos transforma em seres que, para além de perceber e sentir o outro, nos faz desejar digitalizá-lo de forma burra e superficial através dos parcos sinais que emite e que são carinhas, coraçõezinhos, palmas, piscadelas de olhos que enviamos como respostas para perguntas insuficientes que às vezes sequer foram formuladas.

Interessante olhar para o outro neste momentos, há nele um olhar vago ou superconcentrado que revela uma total impessoalidade, distância e indiferença em relação aos outros e que diz algo mais ou menos assim, você não vê que estou ocupado e que você está me atrapalhando? Ele não está conectado com ninguém, ele tem um celular na mão e não está ali.

Se o outro visualiza ou não a sua mensagem, o tempo que ele leva para fazê-lo e o tempo da resposta podem ser elementos cruciais para que o relacionamento, seja amoroso, de amizade, familiar, prossiga, evolua ou aborte imediatamente. Todas estas demandas da resposta do outro, da pressa, sempre existiram entre as pessoas, a necessidade de contato, de controle, de distanciamento, mas agora existe um aparelho que media estas necessidades e é com ele que nos comunicamos certos de interpretar sinais cada vez mais obscuros. A filha de oito anos, de uma amiga minha, chora cada vez que perde para um joguinho no celular e briga com ele aos berros. Rompimentos e aproximações desastrosas acontecem, a vida virtual precipita o caos e intensifica a ansiedade. Estamos num registro puramente projetivo e sem a menor ideia sobre o que se passa realmente com o outro que gostaríamos de acessar ou emocionar.

Bloquear e defenestrar o outro que estava ali toda uma vida é agora procedimento corriqueiro ao menor sinal de contrariedade às nossas expectativas. Sem falar sobre o horror do conteúdo veiculado e como isto nos chega e afeta, uma homogeneização imbecil das palavras, todo mundo é vítima de relações tóxicas e todos são pela diversidade, o que é uma evidente mentira. E dos vídeos que as pessoas pensam que vamos gostar, um casal de leões trepando no meio da savana, uma luta de MMA, uma banda da garagem do vizinho, alguém peidando ruidosamente, o trailler da sua série preferida, 35 fotos de você e sua família no aeroporto de Carrasco num dia de vento e chuva, vídeos longos às vezes… enfim, sabemos do que estou falando.

Se você quer se relacionar com alguém, estou certa disso, é necessário agilidade e esperteza para entender, velozmente, como este outro se relaciona com o seu brinquedinho, quem ele sente que é, virtualmente, falando.

Marina, a filha mais velha do meu ex-cunhado que morreu tem duas semanas, está no doloroso processo do apagamento da vida do pai. Cuida da documentação para o inventário, negocia dívidas e contratos, cancela cartões e dá a notícia aos diversos grupos do watts a que ele pertencia.

Em um dado momento uma tal Cláudia, que Marina não conhecia, respondeu numa mensagem pessoal e fora do grupo esta postagem: “Nossa, acabei de ver a mensagem da sua filha e queria saber o que houve com você, como você está?”

Claúdia está falando com quem? Ela está perguntando para o morto como ele está. O morto não tem como responder. Claudia está conversando com o Wats do celular dela e fazer isto, neste momento, deve lhe produzir algum tipo de alívio, de alento.

Assim estão as pessoas.

A pessoa com quem você está falando, em grande parte das situações, não existe.

(*) Escritora

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora