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19 de fevereiro de 2018
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18:18

“E eu que nunca quis ser parecida com a tal da Elizabeth Taylor”

Por
Sul 21
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“E eu que nunca quis ser parecida com a tal da Elizabeth Taylor”
“E eu que nunca quis ser parecida com a tal da Elizabeth Taylor”
“Todos a achavam parecida com a Elizabeth Taylor, os olhos, a cor dos olhos, a sobrancelha, a expressão do olhar”. (Reprodução/Youtube)

Lélia Almeida (*)

As visitas das consulentes são sazonais, há as que aparecem no início do ano para espiar os arcanos e especular como vai ser o ano, outras aparecem na época do aniversário para saber como vai ser o novo ciclo solar, outras aparecem mais seguido, umas duas vezes a cada dois meses, e há as mais frequentes, principalmente as que estão começando ou saindo de uma tormenta erótica. Há de um tudo, como diz a minha vizinha, neste universo dos oráculos, que para além da previsão, sossega-nos a alma e a ansiedade e faz com que tenhamos uma certa leveza em relação a inexorabilidade do destino.

A que vem hoje é uma cliente antiga, somos da mesma cidade, mas não estudamos na mesma escola. Ela escrevia poemas que eram publicados no jornal da região, e depois passou a escrever pequenos contos e, depois que foi fazer a faculdade, passou a escrever pequenos ensaios, que, se não eram, ardorosamente feministas, tinham como tema central as mulheres. Eram outros tempos e éramos muito jovens.

Embaralho as cartas e lembramos dos tempos passados. Todos a achavam parecida com a Elizabeth Taylor, os olhos, a cor dos olhos, a sobrancelha, a expressão do olhar, era elogiada pela semelhança. Ali, na frente das cartas ela confessa que este foi o pior tormento da vida dela, dela que nunca viu nenhuma semelhança entre ela e aquela senhora e a quem a beleza pouco se lhe dava, porque o que ela queria mesmo, nesta vida, era ser uma escritora. E foi em nome desta semelhança, seguramente uma projeção daquela gente tosca e desocupada, que foi exposta a  muitos desrespeitos, comentários excessivos e desagradáveis e o que ela pode chamar agora, já mulher feita, de francos abusos.

“Meu pai era médico e minha mãe era professora de biologia e a conversa sobre sexualidade na minha casa era monotemática: cuidar para não engravidar. Fora os livros que líamos escondidos do meu pai com paus doentes, perebentos, tortos e toda sorte de deformações em fotos mal tiradas. Isto ocupou momentos da nossa pré-adolescência por que tínhamos mais o que fazer e o começo da puberdade foi-se revelando bem mais interessante, com experiências mais tácteis, por assim dizer. ” Ela conta meio rindo, meio debochada e com aqueles olhos que vão do riso envergonhado à mais pura melancolia.

“E como as iniciações aqui eram, de alguma maneira traumática, dadas às  inexperiências generalizadas, acho que foi difícil para todos, embora não todos se atrevessem a contar.

Eu por exemplo, só vim a saber o que era um estupro quando já era uma mulher adulta. Nunca havia me perguntado sobre aquela violência e forçação de barra, onde eu dizia que não e o outro, mais forte que eu, dizia que sim, e que ficava consumado aquilo que passou a ser, por muito tempo, na minha cabeça, fazer sexo, e que para mim, só significava dor e brutalidade.”

Continuei a embaralhar as cartas pensando em todas as perguntas que podia fazer-lhe, por que não contou para um adulto, por que não denunciou o agressor, em nome do que guardar aquele segredo horrendo, mas desisti, sabia todas as respostas, as mesmas que qualquer menina da atualidade repetiria à farta como um mantra. Da vergonha, da culpa, do estigma, dos comentários de que são as mulheres que provocam estas situações, de que gostar de sexo é coisa de mulher pouco séria e por aí afora.

Antes de espalharmos as cartas sobre o xale de cetim preto, com as flores espanholas bordadas em cores suaves, ela terminou o assunto. “Quando estava no primeiro semestre da faculdade li um livro da Evelyn Reed que se chamava “Sexo contra sexo ou classe contra classe”. E junto com a leitura do “Balanço Final” Simone de Beauvoir, me transformei numa feminista de carteirinha. O texto que escrevi estava longe de ser um ensaio, devia ser, no mínimo, uma sinopse dos dois livros e, provavelmente, com os meus comentários entusiasmados sobre as minhas novas descobertas,afinal, era o início dos anos 80.

Agendei um horário com o editor do jornal, um homem descrito para mim, como absolutamente brilhante, com vasta experiência jornalística, um homem de esquerda e que eu cuidasse com as palavras para dar boa impressão. Acho que desta vez foi a Elizabeth Taylor que me salvou, para que ele me recebesse tão prontamente e convidou-me para descer para o escritório dele que ficava no porão de uma casa velha e antiga, e ali mesmo ergueu o meu vestido xadrezinho de vermelho e branco feito pela minha mãe e me atirou no chão, de bruços, correndo a minha calcinha para o lado, o corpo dele pesando sobre o meu e com a mão tapando a minha boca que dizia, tá doendo, dói muito, ao que ele repetia, só mais um pouquinho, já vai acabar.

Levantamos e enquanto ele abotoava o cinto me disse, já tive referências sobre a sua escrita e vou publicar o seu artigo na edição de domingo. O texto se chamava “Por uma nova antropologia” e seguramente era muito  ruim.

Tive dificuldade para endereçar o passo, uma dor demolidora no corpo e nas pernas como se tivesse sido partida ao meio. Fui devagar pra casa. Ele depois foi um dos mais importantes jornalistas do estado, premiado e tudo.

Toda vez que vou publicar um livro tenho um sonho recorrente, que estou nua e ferida autografando os livros e que a qualquer momento algo muito catastrófico pode acontecer. Custo a começar a escrever os livros, antes e durante a escrita ou depois de encerrada, sou tomada por longos períodos de silêncio e grande angústia. De total desvalia. E a sensação é a de estar fazendo algo proibido e que vou ser punida.

Agora estou velha e graças aos céus não me pareço mais com a Elizabeth Taylor. E quanto a escrever, eu ainda não parei de tentar, sempre medrosa, assustada, com medo das rejeições, atravessando profundas depressões,  e a cada tentativa o esforço é tão devastador que ainda não sei se vale a pena a escolha que fiz.” Foi esta a história que ela contou.

Eu e a minha amiga consulente decidimos adiar a consulta para outro dia, estávamos as duas muito tristes e emocionadas, daquele tipo de tristeza que esconde uma raiva pouco expressada pelas mulheres e que as fariam ter atitudes que os homens, nem nos seus piores pesadelos, seriam capazes de imaginar.

(*) Escritora


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