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6 de dezembro de 2017
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11:33

Uma ET veio me visitar

Por
Sul 21
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Uma ET veio me visitar
Uma ET veio me visitar
“A ET estava precisando arregimentar mulheres inteligentes de todo o universo para lutar contra a burrice masculina”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

 Lélia Almeida (*)

Uma ET veio me visitar, bateu na porta da minha casa e quando abri ela disse que tinham recomendado o meu nome porque sou uma velha feminista e escrevo sobre mulheres. Ela estava precisando arregimentar mulheres inteligentes de todo o universo para lutar contra a burrice masculina. E para isto precisava de muitas mulheres, soldadas inteligentes, estrategistas. Vinha cansada, mas feliz pela magnitude da tarefa. Eu disse que sentia muito, mas que não podia ajudá-la, porque, por aqui, as mulheres andavam muito desenergizadas e confusas. Ela me olhou surpresa e quis saber porque. Tinham-lhe dito que aqui encontraria mulheres sábias, combativas, inteligentes. Fiquei até com preguiça de falar, mas tratava-se de uma visita importante e tentei explicar.

As mulheres não estavam pensado coisas de fato importantes, comecei, poderiam ter grandes avanços contra a máquina funesta montada pelos machos, estes que as matam como moscas, diariamente, em todo o planeta, misóginos e covardes. Que as mulheres mal davam conta dos três turnos de trabalho, entre trabalhar fora de casa e cuidar da família e tals. E como se esta falta de tempo não bastasse, nas brechas de descanso, elas se dedicavam a pensar bobagens que as desfocavam do seu objetivo principal, que era construir sua autonomia e sua autoestima.

A ET ficou com lágrimas nos olhos, umas lagriminhas verdes, de um suave verde alface. Ela quis saber no que pensavam, então, que pudesse deixá-las tão confusas. Eu contei que as mulheres dedicavam um tempo sem fim, intermitente, pensando na sua aparência e que viviam um total desconforto e mal-estar em relação aos seus próprios corpos. Que gastavam fortunas com acessórios, roupas, sapatos, bolsas, cremes, objetos decorativos e outras coisas inúteis para parecerem belas e jovens. Ela quis saber porque, eu disse que para poderem casar e ser aceitas pelos homens. A ET disse, NO ENTENDO. Casar para quê, ela insistiu, eu disse que para se sentirem legitimadas, porque sem eles, elas se sentiam como vacas sem o sino, como dizia o Almodovar.

Cansada já, eu disse que não era fácil de entender, mas que assim era. E que se exauriam em pensamentos obsessivos onde cortavam partes gordas, exuberantes e generosas do próprio corpo. As lágrimas vertiam sem controle, eu nunca tinha visto uma ET triste e choramos juntas abraçadas. Ela perguntou se elas se cortavam tanto quanto desejavam e eu disse que sim, os olhos cresciam e ela insistia em não compreender, eu esclareci, elas acham que se não forem jovens, lindas e magras não serão amadas.

A ET perguntou se os homens eram tão belos e jovens assim e eu expliquei que não, que eles também envelheciam, engordavam, choravam, se angustiavam, broxavam, mas que jamais pensavam em cortar as suas panças gordas de cerveja e que tinham uma autoestima pra lá de elevada. E que por conta de todos estes pensamentos confusos elas não tinham tempo e nem energia para criar projetos importantes que poderiam salvar o planeta onde habitam com seus filhos.

Ela estava pesarosa, decepcionada, pensava no desperdício de carnes e nutrientes abandonados nas mesas de cirurgia e que poderiam minorar a fome dos mundos, e que isto era obsceno e injusto. Tive de concordar, muito envergonhada. Mas são todas as mulheres assim, ela quis saber, eu disse que não, que tinha as raquíticas, miseráveis, com os peitos subnutridos carregando crianças famélicas e que jamais saberiam o que eram carnes em seus corpos. E as que trabalhavam como bichos pra alimentar seus filhos e que não tinham tempo nem de querer casar e nem de se cortar.

Ai que vergonha ter de admitir tudo isto para aquela ilustre embaixadora de outras galáxias. Que vergonha! Eu a tinha decepcionado grandemente, suas antenas graciosas estavam murchas e seus pequenos ombros arcados. Perguntou se este não era um fenômeno passageiro e que, de repente, tudo poderia mudar. Eu, mais uma vez, disse que não queria decepcioná-la e expliquei que não estaríamos mais aqui quando isto, por ventura, acontecesse, que sentia muito. Ela perguntou, isto o quê? Ora, querida, o fim desta grande arapuca, a grande armadilha criada pelo macharedo e estendida na vida das mulheres, que era a armadilha do amor e que as deixava burras, narcotizadas, deprimidas e imbecilizadas.

A ET estava frustrada com a sua empreitada inútil, e eu expliquei que, por aqui, por agora, o seu intento seria uma missão impossível. E que não podia ajudá-la. Abraçou-me profundamente, com a piedade de quem abraça uma mulher involuída, mas sabedoura do tamanho da sua missão. Ventava muito quando ela partiu, mal pude vê-la desaparecer entre as árvores. Voltei pra dentro de casa e continuei olhando as páginas do Face, este espelho onde as mulheres se exibem como verdadeiras retardadas e pensando, nossa, como ela envelheceu, como aquela engordou, olha o bofe que ela conseguiu, que cabelo ridículo! E foi assim que esqueci daquela visita incômoda, e pude voltar pro meu mundo anestesiado onde não resolvemos como mulheres responsáveis a falta de compromisso com as nossas próprias existências, e com as das nossas filhas, todas bastante acomodadas num mundo muito pobre onde não valemos um ovo.

(*) Lélia Almeida é escritora.


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