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30 de outubro de 2017
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13:54

Menina subindo a escada

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Sul 21
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Menina subindo a escada
Menina subindo a escada
Esta não é a postagem de fotos do meu corpo ao sol numa praia paradisíaca num país distante, e nem estou abraçada por um homem que pudesse me amar e eu a ele, e também não estou numa festa exuberante vestida de dourado e batom vermelho bebendo espumante. (Foto: Lélia Almeida/Arquivo pessoal)

Lélia Almeida

Tenho uma reminiscência de infância. Que eu tinha dez anos e subia as escadas da escola onde estudava, num sábado de manhã. Não tínhamos aulas aos sábados pela manhã, mas as lembranças são névoas, fiapos de sensações. E subir aquelas escadas era algo feito com um certo esforço como se eu nunca tivesse podido antes ter subido, sozinha, tão alto. Como se tivesse acedido a um lugar de difícil entrada ou quase proibido. Já tentei associar esta imagem a alguns acontecimentos daqueles tempos, quando a minha mãe veio a Porto Alegre para o enterro do meu avô, e que um ano antes minha irmã tinha nascido, e quando minha mãe deixou pronto no espaldar da cadeira do meu quarto um vestido branco de tricô para que eu pudesse ir ao aniversário da minha prima e que eu dormi abraçada no vestido com medo de que a minha mãe não voltasse da tal viagem. O sentimento de desamparo se misturava a outro, de responsabilidade, de que eu tinha de fazer algumas coisas sem tê-la por perto. Mas subir aquelas escadas tinha me colocado num outro patamar, eu tinha esta sensação de que nunca mais eu seria a mesma e sequer sabia o motivo. Reconheço esta sensação de que desci as escadas sendo outra menina, só isto eu lembro. Volto agora a sentir algo muito parecido, que os eventos recentes me levaram para um outro espaço dentro de mim mesma e que agora caminho a passos lentos, tateando cuidadosamente por um mapa que não conheço. Mas que vou firme rumo ao desconhecido, fresca e esperançosa como a menina que tinha medo, mas que não parava de andar, só porque era imprescindível continuar. E nesta noite tudo é misterioso outra vez, avançar sem saber bem para onde e nem bem porquê. A felicidade é trêmula, precária quase, imperceptível, como se eu não soubesse que a alegria também pode ser tímida e envergonhada. Um sentimento de gratidão me envolve como um cobertor aconchegante e bom e tenho sido tão, mas tão protegida que nem sei a quem agradecer. E nem se sei se sou merecedora de tanto. É apaziguador. Esta não é a postagem de fotos do meu corpo ao sol numa praia paradisíaca num país distante, e nem estou abraçada por um homem que pudesse me amar e eu a ele, e também não estou numa festa exuberante vestida de dourado e batom vermelho bebendo espumante. Na verdade, estou escabelada, com olheiras, visto um casaco de lã surrado e meias velhas e quentinhas. A minha alma, que não tenho como fotografar, está em festa mansa e alegria simples, e não quero adormecer só para estender o prazer, um pouquinho mais, só mais um pouquinho. Obrigado, eu penso, pois hoje consegui sossegar o meu coração e suas ânsias, suavizar a necessidade de controles e expectativas e lembrar que há um céu. E deixar que o céu trabalhe e obre por mim. Boa-noite, então.

***

Lélia Almeida é escritora.


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